Diário de São Paulo
Siga-nos
Meio Ambiente

Proibida há 20 anos: Surfistas contam como foi surfar a "melhor onda do Brasil"

A prática de surfe na Ilha dos Lobos está proibida desde 2003

A prática de surfe na Ilha dos Lobos está proibida desde 2003 - Imagem: Reprodução/Instagram @ilhadoslobos
A prática de surfe na Ilha dos Lobos está proibida desde 2003 - Imagem: Reprodução/Instagram @ilhadoslobos

Ana Rodrigues Publicado em 28/09/2023, às 11h00


A Ilha dos Lobos está localizada no litora do Rio Grande do Sul, em Torres, a 1,8 km da costa. Em condições especiais, suas ondas se formam com um tubo perfeito, que fica fácil de entender porque ela é reconhecida, de forma unânime entre os surfistas, como "a melhor onda do Brasil". O bicampeão mundial de ondas grandes, o pernambucano Carlos Burle, também fez uma declaração sobre as ondas da ilha.

É muito perfeita. A sensação é de você estar surfando uma das melhores ondas do mundo mesmo".

Em matéria do ECOA, é dito que a onda "quebra" praticamente sozinha há 20 anos, já que a prática de surfe na Ilha dos Lobos está proibida desde 2003 - e até a observação com barcos não é autorizada no local.

O motivo é porque o lugar é um refúgio para lobos e leões-marinhos, além de outras espécies como focas e elefantes-marinhos. A região é protegida pelo Revis (Refúgio de Vida Silvestre da Ilha dos Lobos), uma unidade de conservação federal gerida pelo ICMBio (Insituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Porém, para a alegria dos surfistas, o ICMBio deve iniciar estudos que podem, finalmente, liberar a prática de esportes e a visitação no local, mas com algumas restrições.

Os dois surfistas que foram entrevistados pelo ECOA, compararam a onda da Ilha dos Lobos com a de Teahupo'o no Taiti, considerada uma das mais perfeitas e temidas do mundo.

É como se estivesse surfando uma onda parecida com Teahupo'o. Você sente que o fundo desaparece, fica muito oca, uma onda de slab [fundo de pedra] mesmo, só que perfeita", contou Carlos Burle, que teve a oportunidade de pegar um dia de ondas épicas na Ilha dos Lobos, em 2003, ao lado dos surfistas Rodrigo Resende, Alemão de Maresias, Pato Teixeira, Rodrigo Dornelles e Sylvio Mancusi.

Burle ainda completou.

Esse dia estava muito perfeito, superou as minhas expectativas. Eu já tinha ouvido falar, sabia que era boa, mas naquele dia lembro que todo mundo falou 'não acredito que tem esse tipo de onda aqui'. Muito perfeita mesmo".

Rodrigo Dornelles, também conhecido como Pedra, é um surfista gaúcho que mora em Torres (RS) desde os 13 anos e é o melhor brasileiro do Circuito Mundial de Surfedo ano de 2007, e também tem boas lembranças desse dia histórico na Ilha dos Lobos.

Não parece que você está [surfando] no Brasil. Você fica em choque quando vê a onda, ela suga muito e dá um tubo enorme. A força da água impressiona e a vibe do lugar, aquela ilha, só um amontoado de pedra... É uma sensação muito boa", afirmou ele.

Em 2003, após um reportagem no Fantástico (TV Globo), onde fazia uma expedição dos surfistas à Ilha dos Lobos, o local passou a receber muitos turistas. O que fez com que o Ibama - órgão que geria a unidade de conservação na época - interditasse a prática do surfe e demais atividades no local.

A uma grande biodiversidade no local, que recebe visita de animais conhecidos como pinípedes, mamíferos aquáticos como lobos, leões e elefantes-marinhos, além de focas. Esses animais frequentam todos os anos a costa brasileira, concentrando-se em apenas dois locais do Rio Grande do Sul: o Refúgio de Vida Silvestre da Ilha dos Lobos, no litoral norte gaúcho, e o Refúgio de Vida Silvestre do Molhe leste, no litoral sul do estado. 

Segundo o ICMBio, em julho, os lobos e leões-marinhos saem de suas colônias na Argentina e no Uruguai rumo ao Brasil, para aproveitar a corrente de águas frias das Malvinas. Os animais podem acabar fazendo uma parada de repouso no Molhe Leste ou subir direto para a Ilha dos Lobos. Após ficar lá em grande número até outubro, retornam para suas colônias reprodutivas.

Eles vêm para cá, os machos passam época de reprodução em suas colônias e vêm para o Brasil buscar descanso e alimentação. Isso ocorre para não haver uma disputa por alimentação com as fêmeas, que ficam nas colônias com os filhotes", expliou Juliano Oliveira, analista ambiental do ICMBio e chefe do Revis.

Quando a Ilha do Lobos era liberada para o turismo e a prátifca de esportes como o surfe, a grande movimentação de pessoas acabava incomodando os animais. E, ainda vale ressaltar que, por conta do tipo de onda do local, o surfe mais praticado era o de tow-in, que usa um jet-ski para colocar o surfista na onda.

Quando temos uma atividade que perturba os bichos, estamos impedindo que eles descansem e se alimentem, dificultando que voltem fortes e saudáveis para disputar as áreas de reprodução no Uruguai e na Argentina", disse Juliano Oliveira.

Ainda segundo Oliveira, em 2003, começou a ter muitos eventos que não estavam respeitando as orientações do Ibama.

Por conta de um conflito pelo uso desordenado, optou-se por proibir as atividades". 

Em breve, o ICMBio deve iniciar estudos que podem liberar a local para o surfe. Em abril, o governo federal aprovou o plano de manejo do Revis, que servirá para disciplinar as atividades que podem ou não ser realizadas. Ainda com a elaboração do plano, envolveu de órgãos públicos a colônias de pescadores. Porém, não há previsão para esses estudos serem concluídos e, caso o surfe volte a ser liberado um dia, isso será para alguns eventos específicos, com autorização prévia, até por causa da legislação da Marinha.

O litoral gaúcho é aberto, então não é permitido o trânsito de jet-ski (necessário no surfe tow-in), a não ser em eventos", pontuou Juliano Oliveira.

Além do surfe, o SUP (stand-up paddle), o mergulho, o caiaque e o turismo de observação embarcada estarão em avaliação e podem também ser liberados após os estudos que serão feitos pelo ICMBio, em parceira com a AST e o Gemars (Grupo de Estudos de Mamíferos Marinhos do Rio Grande do Sul).

Um deles já está adiantado, que é o turismo de observação com barcos. Estamos realizando os testes e as pesquisas para que isso possa retornar, porque é um importante segmento econômico de Torres, município muito voltado ao turismo", disse Oliveira.

O analista ambiental do ICMBio, deixou claro que a prioridade diante de tudo que envolve uma possível liberação das atividades é uma só: o bem-estar dos animais.

A gente precisa lembrar que a unidade de conservação existe para a proteção deles. As outras atividades podem ser toleradas e é importante que sejam, desde que isso não cause impacto ao meio ambiente". A gente não quer, por exemplo, que as atividades sejam tão desregradas ao ponto de afastar os animais ou que, por conta do impacto, venham tão poucos animais que não seja mais possível fazer o turismo de observação. Você estaria dando um tiro no pé, então é importante achar esse meio-termo", falou Juliano Oliveira, analista ambiental do ICMBio.

A Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), ONG fundada em 1971, dá o seu voto confiança ao ICMBio, mas ainda aguarda os estudos e promete monitorar o assunto.

O ICMBio geralmente é muito sério, mas não sei quem vai encomendar e fazer o estudo. Não dá para julgar por antecipação. Tão importante quanto os estudos são os monitoramentos, não só no sentido de identificar algum dano e corrigi-lo, como também no sentido de gestão. Não adianta você proibir se ninguém fiscaliza", pontuou Francisco Milanez, ex-presidente da Agapan e hoje membro do conselho superior da entidade.

Porém, Milanez teme que um dos poucos lugares do Brasil ainda protegidos por lei possa um dia voltar a ser tomado por ações desreguladas dos seres humanos.

Aí entra um egoísmo por uma onda um pouco melhor. O litoral do Rio Grande do Sul tem 700 km, e os caras vão tomar o único lugarzinho que ainda tem alguma proteção? Mas, se um estudo mostrar que não tem problema, a gente não está fechado. A nossa meta é a vida, inclusive a humana", garantiu.

E ainda completou.

Somos favoráveis ao máximo de convívio, à reintegração do ser humano com a natureza. Os problemas são as formas... Às vezes, a nossa presença atrapalha a reprodução dos animais e outros detalhes, então temos que tomar cuidado pra não acabar prejudicando um dos únicos lugarezinhos preservados".
Compartilhe  

últimas notícias