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Existe Justiça no Brasil?

Existe Justiça no Brasil? - Imagem: Pinterest
Existe Justiça no Brasil? - Imagem: Pinterest
Amilton Augusto

por Amilton Augusto

Publicado em 06/03/2023, às 08h13


Há algum tempo que no Brasil a Justiça é questionada, pela população de um modo geral, por pessoas de diversas classes sociais e credos, assim como de opções políticas diversas e muito distintas, seja por ocasião do julgamento do Mensalão e Lava-Jato, seja, através das manifestações do ex-Presidente da República, Jair Bolsonaro, acerca de decisões do Supremo Tribunal Federal, e, especialmente, mais recentemente, por pessoas que lhe são simpáticas, pelas prisões de diversas pessoas, decorrentes do episódio que culminou com as invasões do prédios públicos em Brasília.

Diante de tantos questionamentos acerca das decisões judiciais no Brasil, que não estão restritas ao casos aqui citados, mas que, por vezes, impactam a vida de pessoas comuns, em vários níveis e esferas, seja por decisões em ações de qualquer natureza, das criminais até as referentes as relações de consumo, passando pelas relações de família e trabalhistas. Enfim, onde tem uma demanda judicial e pessoas litigando, há questionamentos acerca da justiça das decisões, o que nos faz questionar se efetivamente há Justiça no Brasil.

Para tanto, temos que descortinar o tema e aprofundarmos, numa verdadeira viagem ao passado, no sentido de compreendermos a essência do que vem a ser a Justiça. Por certo que Justiça é um conceito abstrato, que se refere a um estado de interação social ideal, onde se busca um equilíbrio, por si só razoável e imparcial, entre os interesses, riquezas e oportunidades das pessoas envolvidas, podendo ser reconhecida por mecanismos automáticos ou intuitivos nas relações sociais ou por mediação através do Poder Judiciário.

No conceito originário da Grégia Antiga, a Justiça, representada pela deusa Témis, e, mais tarde, Dice, tem por função buscar a igualdade entre os cidadãos, sendo considerada como uma das quatro virtudes cardinais, sendo, ainda, relacionada ao direito e à lei. Desse modo, podemos afirmar que a Justiça, no seu conceito primitivo, é considerado um direito fundamental do cidadão, sendo o princípio que assegura o equilíbrio entre os direitos e deveres de cada um, garantia de que os direitos individuais sejam preservados e que as leis sejam cumpridas.

Ocorre que é justamente nessa definição final onde se encontra a celeuma entre Direito e Justiça, no conflito entre a defesa dos direitos individuais e o cumprimento das lei impostas pelo Estado, uma vez que a Justiça se manifesta justamente através da imposição do cumprimento das leis, visando garantir que a sociedade tenha regras e princípios que a guiem numa suposta direção a uma existência justa e equilibrada, visando a manutenção da ordem, da ética e da responsabilidade social.

Mas, se a Justiça é, em regra, conceito que se manifesta pela imposição do cumprimento das leis, surge, então, outro questionamento: as leis são justas?

Como se verifica, não é tão simples entender o conceito de Justiça, especialmente quando adentramos as questões relacionadas as leis impostas pelo Estado e, ainda, pela própria aplicação dessas normas, especialmente diante dos julgamentos feitos pelo Poder Judiciário, o que se torna notório, no Brasil, diante dos inúmeros casos de julgamentos anulados ou declarados nulos pelo STF, referentes aos casos do Mensalão e Lava-Jato e, ainda, a atuação deste mesmo órgão em alguns casos mais recentes.

Para compreendermos melhor que não se trata de mera equação matemática, devemos verificar os ensinamentos de Platão, na obra “A República”, para quem, através do Diálogo de Trasímoco, “justiça é o interesse do mais forte”, opinião que é mais política que ética, vez que, para ele, “os grupos vencedores, ao se estabelecerem como governantes, põem leis para os governados: os tiranos, leis tirânicas; a democracia, leis democráticas, e assim os demais regimes políticos” e “quem as transgride é castigado como violador da lei, e é considerado injusto”, portanto, para esse filósofo, justiça consistiria numa espécie de interesse.¹

Veja que, já na antiguidade, os grandes nomes da filosofia já questionavam o fato de que a justiça se ampara pelas leis do tempo, trazendo que o conceito de justiça está diretamente atrelada ao pensamento daqueles que governam e que fazem as leis, uma vez que ainda que as leis sejam tiranas, a justiça deveria seguir tais preceitos, situação impensável nos dias atuais, especialmente diante do ditames da nossa Carta Magna de 1988, mas que, mesmo que de modo isolado, permite que o Congresso Nacional edite normas por vezes consideradas por muitos como injustas, especialmente por aqueles que são diretamente atingidos por estas.

Diante desse cenário, ainda buscando os ensinamentos dos filósofos da antiguidade, temos a reflexão trazida por Sócrates acerca da falibilidade humana, para quem “se a justiça é uma espécie de interesse do mais forte. (...) Para salvaguardar seus interesses, os governantes põem leis para os governados. Pondo-as, uma podem estar corretas, mas outras incorretas. As corretas, sendo do interesse dos governantes devem ser obedecidas pelos governados. Mas as incorretas, que não são mais do seu interesse, devem também ser observadas por eles?”

Tais questionamentos, ainda que remontem há séculos, diante do que ainda se presencia, verifica-se claramente se tratar de tema por demais complexo e atual, sendo, no entanto, de difícil compreensão para alguns, especialmente para o senso comum, o que levanta diversos debates pela comunidade jurídica, especialmente para o saudoso jurista Miguel Reale, que vai além da legislação, considerando a própria Justiça em crise, cujos reflexos impactam a percepção da própria sociedade, diante de diversos fatores, “desde a alarmante morosidade (...) até o leal reconhecimento de que nem mesmo o Poder Judiciário ficou isento dos maléficos da corrupção”

Portanto, como se vê, o tempo acaba por reger o conceito de Justiça de cada sociedade, tornando o entendimento sobre o seu real e efetivo conceito extremamente abstrato, o que é reiterado por Miguel Reale, quando afirma que “se a justiça (...) ‘é a constante coordenação racional das relações intersubjetivas, para que cada homem possa realizar livremente seus valores potenciais visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com o da coletividade’, a conclusão implícita é a de que ‘cada tempo histórico tem o seu conceito de justiça’”.⁴

Assim, podemos afirmar claramente que o senso de justiça em nosso País está diretamente atrelado ao conceito de ordenamento jurídico vigente, numa perspectiva de que a justiça é a aplicação da legislação existente, independente do resultado prático alcançado e dos impactos causados, por vezes legal, mas injusta; por vezes legal e imoral, e, até mesmo falha, mas, ainda que diante de tal conceito abstrato, cuja interpretação é bastante individualizada, destaca-se que, enquanto vivermos sob o manto de uma democracia constitucional, amparados pelos preceitos e princípios vigentes que trazem a legalidade como norteador, mesmo diante de normas injustas, embora caiba a cada qual discordar das decisões e do sentido de justiça aplicável, não cabe a ninguém desrespeitá-la, afinal, a única justiça perfeita é a Justiça divina.

____________

¹ PLATÃO. A República (tradução, introdução e notas: Eleazar Magalhães Teixeira). São Paulo: Folha de S. Paulo, 2021. (Coleção Folha Os Pensadores; v. 1). p. XII.

² Idem.

³ REALE, Miguel. Política e direito: (ensaios). São Paulo: Saraiva, 2006. p. 77.

⁴ Idem. p. 94.

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