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COLUNA

O Projeto de Lei nº 596/2022 e suas incongruências na busca pela defesa do consumidor

A proposta legislativa que pretende alterar o Código de Defesa do Consumidor e enfraquecer o poder fiscalizatório do PROCON.

Fiscalização PROCON/SP. - Imagem: Divulgação / Prefeitura de Cajamar
Fiscalização PROCON/SP. - Imagem: Divulgação / Prefeitura de Cajamar

Newton de Lucca & Rogério Auad Palermo. Publicado em 22/12/2022, às 07h46


De autoria do Deputado Estadual Vinícius Camarinha, tramita na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei nº 596/2022, que objetiva a alteração da Lei Estadual nº 9.192/1995 para o fim de acrescer dispositivos que versam sobre os procedimentos administrativos de fiscalização, autuação, dosimetria e fixação de penalidade-base conduzidos pelo PROCON/SP.

Nos termos de sua justificativa, as alterações seriam necessárias – e indispensáveis – tendo em vista que, desde a entrada em vigor da referida norma, os hábitos consumeristas passaram por diversas mudanças e não estariam mais em consonância com o que estabelece a Lei Estadual nº 9.192/1995.

Em suma, propõe o Deputado Estadual: i) a digitalização dos processos administrativos; ii) a inclusão de uma nova modalidade de sanção administrativa, isto é, a advertência; iii) a mudança da dosimetria das penas; e, ainda, iv) a alteração da base de cálculo da sanção de multa.

Pois bem.

Há que se registrar, de início, que as propostas do PL nº 596/2022 não se concentram em - apenas - atualizar a legislação estadual. Pelo contrário, o texto legislativo sobrepõe-se, e muito, às normas do Código de Defesa do Consumidor.

Nesse aspecto, cumpre observar que, muito embora a competência para legislar sobre as relações de consumo seja concorrente à União, aos Estados, ao Distrito Federal (artigo 24 da Constituição Federal) e aos Municípios (artigo 30 da Constituição Federal), os Estados não poderão dispor livremente sobre a matéria.

Em atenção ao princípio da hierarquia das normas, na hipótese da competência concorrente, insta assentar que a caberá à União a edição de normas gerais, enquanto aos Estados e Municípios somente a complementação de eventuais lacunas, a depender das peculiaridades regionais. Significa dizer que a norma estadual que se propõe a substituir – e não complementar – uma lei federal, extrapola a sua competência.

E esta é a situação que se verifica no PL nº 596/2022. São diversas as propostas que superam a norma geral editada pela União – Lei Federal nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consulente). Seja pela adição de uma nova modalidade de sanção, a advertência (artigo 23 Z, I), seja pela alteração da dosimetria e dos regramentos da pena de multa (artigo 23-A-I), entre tantas outras.

No que concerne à advertência, em que pese se tratar de uma modalidade de sanção administrativa, ela não está prevista no Código de Defesa do Consumidor. Estar-se-ia, diante, portanto, de uma lei estadual que extrapolaria a norma geral.

Sobre esta “nova” sanção, há que se pontuar uma importante questão. Seria ela adequada para a punição de atos lesivos aos consumidores? Se um fornecedor, ainda que na condição de infrator primário, vier a comercializar um produto contaminado, assim como recentemente ocorreu no caso dos petiscos para cachorros - que levaram à morte dezenas de animais -, bastaria a imposição de uma pena de advertência?

Segundo o projeto (artigo 23 Z, §1º), a advertência deverá ser a primeira sanção a ser aplicada ao infrator, não mais cabendo ao gestor público o seu poder discricionário quanto à melhor alternativa, de acordo com a gravidade da infração.

No que tange à sanção de multa, se a proposta assim prevalecer, a penalidade passará a ser graduada de acordo com a natureza e o grupo da infração. Deixará de observar, portanto, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor, como estabelece expressamente o artigo 57 do Código de Defesa do Consumidor.

 Há que se salientar que essas mudanças em nada se aproximam dos interesses dos consumidores. Além de prever a exclusão da vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor do cálculo da sanção pecuniária, pretende o projeto alterar a base de cálculo da multa, substituindo a receita bruta do fornecedor (artigo 3º da Portaria Normativa nº 81/2021) para o valor do produto ou do serviço (artigo 23 A-I do PL nº 569/2022).

Com isso, é muito provável que as multas deixem de ser uma importante ferramenta para assegurar a consecução dos direitos do consumidor e passem a figurar como meras formalidades de um procedimento sancionatório, pois certamente alcançarão valores irrisórios, na maior parte dos casos.

E em tais hipóteses, na prática, as multas equiparar-se-ão aos efeitos da pena de advertência, distanciando-se do caráter pedagógico - e punitivo – da constrição monetária.

É oportuno trazer à baila, mais uma vez, o exemplo dos petiscos contaminados que mataram dezenas de cachorros pelo País. Neste caso, seria correto impor a multa ao fornecedor tendo como base de cálculo o valor do produto (cerca de R$ 5,00 por embalagem)? A sanção pecuniária atingiria as suas finalidades pedagógica e punitiva?

Importa registrar que as sanções pecuniárias de baixo valor representam verdadeiro obstáculo aos gestores públicos que, por muitas vezes, veem-se obrigados a avaliar o custo-benefício de sua aplicação, haja vista o alto custo de mobilização da máquina administrativa para a instauração de um procedimento sancionador. Além disso, quase sempre se observa a ineficácia da sanção, pois a pequena monta não teria o condão de refletir qualquer repreensão ao fornecedor.

Com isso, o poder de fiscalizaçãodo PROCON/SP, que hoje é indispensável para a garantia dos direitos do consumidor, estará exposto ao risco de ser duramente enfraquecido.

E como se não bastasse a alteração da base de cálculo das multas, a proposta ainda prevê a hipótese do concurso formal (artigo 23 A-I, §4º), o que certamente beneficiará os fornecedores que vierem a cometer infrações de mesma natureza.

No mais, cumpre assentar que, em sentido diverso do que estabelece a ordenação jurídica atual quanto à transparência e ao acesso aos dados, o projeto de lei, em seu artigo 23-A, impõe sigilo ao processo administrativo de fiscalização, autuação e sancionatório até a decisão final, não permitindo a sua consulta a qualquer interessado. Evidente violação constitucional (artigos 5º, LX, e 37), cujos dispositivos garantem ao cidadão a publicidade dos atos administrativos.

Há que se atentar, ainda, ao fato de que a digitalização dos processos, assim como proposto, não poderá representar qualquer barreira ao acesso dos serviços do PROCONpelos cidadãos, sob pena de ficar violado o que estabelece o artigo 4º do CDC.

Não se pode olvidar que uma generosa parcela da população não tem acesso à internet, seja para registrar eventual reclamação ou, até mesmo, para cadastrar um simples endereço de e-mail. Além disso, a transição dos processos para a forma eletrônica exige do poder público a adequação de suas estruturas internas, seja para a aquisição de novos equipamentos e/ou para a capacitação dos agentes. 

Nessa ordem de ideias, não há como afastar os diversos indícios de inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 596/2022. Porém, a sua aprovação é iminente, pois a proposta tramita em regime de urgência e, na data de 21/12/2022, conta com o parecer favorável das Comissões de Constituição, Justiçae Redação, de Administração Pública e Relações do Trabalho e de Finanças, Orçamento e Planejamento (Parecer nº 876/2022).

Se aprovada, e nesses termos, a proposta legislativa não só representará um triste retrocesso para as relações de consumo, mas também o enfraquecimento do PROCON, um órgão cuja atuação é fundamental para a garantia dos direitos dos consumidores.

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