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O pão nosso de cada dia

A Última Ceia, de Leonardo da Vinci - Imagem: Reprodução

Marlene Polito Publicado em 01/10/2024, às 10h21

A conversa corre leve e descontraída, com muitos falando ao mesmo tempo, dando risada, expondo suas queixas sobre a seleção brasileira, suas observações sobre os candidatos políticos, a rotina diária, entre outras coisas. Todos sentados à mesa de almoço conversam.

As grandes discussões da manhã, com críticas e debates acirrados, caretas e muxoxos à menção de um ou outro nome de especialista renomado, cederam lugar agora a uma conversa afável, com cumprimentos de lado a lado e histórias pitorescas que acabam provocando gargalhadas em todos.

Lembro-me do famoso gastrônomo francês Jean Anthelme Brillat- Savarin (1755 – 1826); uma de suas máximas – “Diga-me o que comes, e eu te direi quem és” – é até hoje conhecida e respeitada. 

O ato de comer é eminentemente social

Brillat-Savarin defendia que a comida e o prazer de comer eram essenciais para a vida e a saúde, e associava a dieta alimentar ao bem-estar físico e mental. Segundo ele, nós, humanos, podemos usar nossos outros sentidos em paz e sozinhos; entretanto, o ato de comer é eminentemente social, e raramente apreciamos fazer nossas refeições sem companhia. Quando isso acontece, sentimos que algo se perde. 

Estamos acostumados a dividir a comida em família, na quietude ou turbulência de um lar, o que nos garante um sentido de ligação, confiança, pertencimento e afeto, atribuindo ao ato um valor simbólico e profundo, carregado de significações. “Partilhar o pão” com alguém, por isso, traduz-se, até de forma subliminar, como um gesto de conexão que vai além do simples ato físico de comer, carregando significados humanos e sociais.   

Como Brillat-Savarin afirmou: “... todos os aspectos da sociabilidade podem ser encontrados reunidos ao redor da mesma mesa: amor, amizade, negócios, especulação, poder, importunidade, patronato, ambição, intriga ...”. E se um evento é feito para ter importância intelectual, emocional, simbólica ou mística, o alimento terá uma participação relevante para a sua consagração e união, criando laços e tornando o momento ainda mais especial.

Análise de um flagrante na arte

A “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, nos dá um exemplo marcante ao retratar toda a dramaticidade e tensão emocional do momento em que Jesus anuncia aos apóstolos que um deles o trairá. Lançando mão da gestualidade e da psicologia das emoções, da Vinci leva até nós o mundo complexo das emoções que acontecem. Cada personagem deixa transparecer uma expressão distinta, um gesto revelador; e há surpresa, dúvida, determinação, serenidade, incerteza, descrença, raiva e até medo.

Jesus Cristo está no centro, e sua expressão é calma e resignada.  O dinamismo da cena deixa transparecer o impacto insólito dos sentimentos que acontecem, desde o choque coletivo até a inquietação pessoal, o que, acabará por nos enredar no dilema e na intensidade daquele instante em que um grupo de pessoas se reúne para compartilhar o alimento.

Como, então, algo tão comum – reunir-se para uma refeição – se transforma em um ato sublime? Essa é uma questão que merece reflexão e atenção especial. 

Aqui, o simples gesto de partilhar o pão e vinho assume a dimensão de uma representação poderosa de sacrifício, comunhão e revelação. Naquela mesa, o pão compartilhado deixa de ser apenas o alimento concreto, físico, e se transmuta. Possui agora um valor transcendental, que está além dos sentidos e limitações humanas, mas é percebido e vivenciado por todos. É símbolo de redenção e entrega, e se eleva à esfera do sublime. Não é mais o gesto humano cotidiano; revela-se agora como ritual que vai além do tempo e do lugar, alcançando uma dimensão única, espiritual.

O compartilhar do pão nosso em nossos dias

Historicamente, a comida tem um papel essencial nas tradições culturais em todo o mundo. 

Nos dias atuais, a rotina acelerada, a crescente dependência de dispositivos digitais e a comercialização das refeições compartilhadas podem enfraquecer a qualidade do encontro e de seu valor simbólico, reduzindo o ato de compartilhar o alimento apenas à sua finalidade funcional primeira. Entretanto, o que pode parecer uma mera rotina de convivência é, em essência, uma ação repleta de significados e ainda pode ser um momento especial, mesmo em meio à correria do cotidiano. 

Cada vez que nos reunimos em torno de uma mesa — seja com a família, amigos ou colegas de trabalho — estamos, de certa forma, recriando esse laço de humanidade e conexão que A Última Ceia representa. Podemos resgatar a importância desse gesto ao encontrar o outro na partilha e ao nos dedicarmos ao momento.

Mesmo na banalidade de um gesto comum haverá  sempre a possibilidade de fortalecer os vínculos e valorizar o ato de estar juntos.

Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio jabuti) e “O enigma de Sofia”. polito@uol.com.br 

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