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Vítimas de ofensas no handebol contam como reagiram ao preconceito de árbitros

Uma série de comentários preconceituosos durante uma partida do Campeonato Brasileiro Júnior feminino de handebol, na última terça-feira, 14 de setembro,

Vítimas de ofensas no handebol contam como reagiram ao preconceito de árbitros
Vítimas de ofensas no handebol contam como reagiram ao preconceito de árbitros

Redação Publicado em 21/09/2021, às 00h00 - Atualizado às 18h06


Técnico e atleta de Araraquara explicam ao ge como souberam dos comentários preconceituosos feitos por árbitros em jogo do Campeonato Brasileiro Júnior feminino de handebol

Uma série de comentários preconceituosos durante uma partida do Campeonato Brasileiro Júnior feminino de handebol, na última terça-feira, 14 de setembro, resultou no afastamento de dois árbitros pela CBHb (Confederação Brasileira de Handebol). As ofensas foram registradas durante a transmissão do jogo entre Fundesport, de Araraquara, e Centro Olímpico, de São Paulo, em um canal no Youtube. Os árbitros não estavam escalados para a partida, mas os áudios foram captados pela câmera enquanto eles assistiam ao confronto na arquibancada do ginásio, em Sorocaba, no interior de São Paulo.

Árbitros são afastados depois de acusação de assédio e racismo

As primeiras ofensas são direcionadas ao técnico Robison Santos, do Araraquara. É possível ouvir: “Seboso, cara de bêbado, mal vestido. Parecia uma moça jogando”. Em entrevista ao ge, o treinador de 40 anos questiona as declarações e aponta para a estrutura racista no discurso dos árbitros.

– Eu não me visto diferente de nenhum técnico. Não vejo porque tenho cara de bêbado. São comentários totalmente desnecessários. Não sei onde sou seboso. Por que meu cabelo é blackpower? O racismo às vezes é direto, às vezes ele é estrutural. Nesse caso, tá dentro da estrutura das frases, né? Não precisa de muito conhecimento sobre o que é racismo para notar que as ofensas e as conotações colocadas a mim estão dentro disso – analisa Robison.

Robison Santos, técnico do time feminino de handebol de Araraquara — Foto: Emilio Botta

Robison Santos, técnico do time feminino de handebol de Araraquara — Foto: Emilio Botta

– Estou no handebol desde os 11 anos de idade, completei 40 esse ano. Joguei durante 12, 13 anos e estou como técnico há mais de dez. Nunca tinha passado por isso, nunca tinha visto isso acontecer no handebol – completa o treinador.

Nas gravações também é possível ouvir palavras direcionadas às atletas. Como “essa está gostosinha, que delícia”, “elas eram magrinhas, mas engordaram na pandemia”, são alguns deles. Amanda Stein, de 21 anos, armadora do Araraquara, relata o momento em que ela e as companheiras de time descobriram as ofensas.

– Nossa amiga estava ouvindo o jogo pelo fone de ouvido e enviou num grupo em que não estavam os técnicos. Num primeiro momento foi um choque por não acreditar que aquelas pessoas (árbitros), que deveriam dar o exemplo, falando aquelas coisas. Mas depois o que prevaleceu foi a raiva, por eles estarem lá, fazerem isso com a gente, esses comentários preconceituosos – diz a atleta.

Amanda conta que, apesar de ofensivos, os comentários dos árbitros são comuns na rotina de uma atleta.

– Sempre existiram [as ofensas]. A diferença é que esses foram gravados. A gente ouviu e teve a certeza do que aconteceu. Mas é uma coisa que diariamente a gente passa. Comentários homofóbicos por sermos majoritariamente lésbicas. Falam que “atletas são lésbicas”. A gente passa por coisas que outras pessoas não passam. Sexualizam nosso corpo o tempo inteiro. Isso é o normal de quem é atleta – afirma Amanda.

Jogadoras protestam durante Brasileiro feminino de handebol — Foto: Arquivo Pessoal

Jogadoras protestam durante Brasileiro feminino de handebol — Foto: Arquivo Pessoal

Após ser informado pelas jogadoras sobre a existência do vídeo, Robison Santos registrou boletim de ocorrência na manhã de segunda-feira. Segundo o documento, as ofensas configuram crime contra a honra, injúria racial e assédio moral. O treinador promete levar a denúncia à frente e quer servir de incentivo para outros fazerem o mesmo.

– Abala a mim, a outras pessoas que não tem a mesma voz ou não tiveram oportunidade de falar. Tenho que aproveitar o momento e ser uma das vozes que não vai ser calada. Tenho que levar até o fim e encorajar pessoas que passaram e estão passando por isso a falar também. Tem que levar na justiça, tem que denunciar. Esse não é um comportamento aceitável mais.

O técnico ainda lamenta as possíveis consequências do ocorrido para o desenvolvimento das modalidades esportivas femininas no Brasil.

– Uma menina que pode vir a viver do esporte, chegar longe nele, pode abandonar o esporte devido a essas colocações. Algumas nem chegarem a participar do esporte. Para o esporte feminino, é como se dessem uma pancada. É uma luta diária para conseguir as coisas. A gente trabalha muito sério.

Os dois árbitros foram excluídos da competição e expulsos do hotel onde toda organização e delegações estavam hospedados em Sorocaba, no interior de São Paulo, sede da competição. O caso ficou sob responsabilidade do Comitê de Política para as Mulheres do Handebol, braço da CBHb. A postura da entidade foi elogiada por Robison e Amanda.

– Acho que essas atitudes já deveriam não existir desde o início, mas são vozes que não devem ser caladas. A denúncia tinha que ser feita, levada a frente. Graças a Deus tinha a Comissão de Ética das Mulheres do Handebol. Elas foram fundamentais para que se cumprisse algo de imediato na competição. Nos deram total apoio – diz o treinador.

– Eu me sinto segura pelo que eles fizeram depois. Já tiraram eles (árbitros) do hotel, da competição. Arcaram com as consequências do que eles fizeram. Não foi algo que passou batido – completa a atleta.

Em reflexão sobre o caso, Amanda afirma carregar aprendizados para a vida pessoal. Para a atleta, é necessário tomar cuidado com as palavras no dia a dia.

– Espero que sirva de aprendizado para todo mundo. Porque, como eu disse, muita gente fala, mas não é gravado. Assim como a gente também faz comentários maldosos com pessoas que são até nossas amigas, mas não estamos sendo gravados. É para a gente aprender como sociedade, não apenas no esporte feminino. É uma coisa para levarmos para a vida e entender que não dá para sair falando o que quiser. As coisas magoam as pessoas.

Nota oficial do time de Araquara sobre o caso de assédio no Brasileiro de handebol — Foto: Divulgação

Nota oficial do time de Araquara sobre o caso de assédio no Brasileiro de handebol — Foto: Divulgação

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Globo Esporte

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