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UFC 262: Charles do Bronx crê na “pedra de Davi” para ser campeão

Se você visse a história de Charles do Bronx na infância sem saber o que aconteceria com ele hoje, jamais iria imaginar que o menino franzino, de saúde

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Redação Publicado em 10/05/2021, às 00h00 - Atualizado às 13h03


Diagnosticado com febre reumática e sopro no coração aos 9 anos, brasileiro chegou a ouvir de médicos que nunca mais poderia praticar esportes. Sábado, ele enfrenta Michael Chandler pelo cinturão

Se você visse a história de Charles do Bronx na infância sem saber o que aconteceria com ele hoje, jamais iria imaginar que o menino franzino, de saúde frágil, chegaria a uma disputa de cinturão da maior organização de MMA no mundo. Neste sábado, o brasileiro fará a luta principal do UFC 262 pelo título do peso-leve (até 70kg), mas para chegar lá precisou superar adversidades muito mais difíceis que as que terá pela frente diante do duro Michael Chandler.

Para entender o que aconteceu com Charles vamos voltar 22 anos, quando o lutador tinha apenas nove. Como quase toda criança desta idade, ele gostava de jogar futebol com os amigos, empinar pipa, mas as dores no calcanhar incomodavam frequentemente. Seus pais, Francisco e Ozana, o levaram algumas vezes ao hospital para tentar descobrir o motivo, mas nunca era encontrado nada grave, até que uma crise fez com que o menino precisasse ser internado e passasse por uma bateria de exames, que detectaram febre reumática e um sopro no coração da criança de 9 anos.

– Começaram a fazer exame de um lado, de outro, foi quando descobriu essa doença nele, no calcanhar. Aí fizeram o exame, mandaram pra São Paulo, pra um laboratório, foi onde descobriram a doença e o sopro no coração também. Através disso começou a fazer tratamento e o médico falou que ele não poderia jogar bola, que ia ficar de cadeira de rodas. E a gente não aceitou isso. “Jamais, meu filho vai voltar a andar, não quero isso” – contou Ozana, ao “Esporte Espetacular”.

Charles do Bronx luta pelo cinturão dos leves no próximo sábado contra Michael Chandler — Foto: Jeff Bottari/Getty Images

Charles do Bronx luta pelo cinturão dos leves no próximo sábado contra Michael Chandler — Foto: Jeff Bottari/Getty Images

A partir daí, Charles precisou enfrentar uma rotina de internações que durou cerca de dois anos. Mas se recusou a abandonar o esporte encontrou nos tatames a prova de que o jiu-jítsu salva, como diz o jargão da arte suave.

– Venho de comunidade, minha mãe sempre botou a gente no esporte porque tinha medo da gente ir para o outro lado. Mais novo tive reumatismo nos ossos e sopro no coração. O médico falou que eu não poderia fazer esporte, nem nada. Mas sempre tive fé. Falei pro meu pai que preferia morrer a ficar sem fazer esporte. Iniciei no jiu-jítsu, um mês depois voltei no médico e joguei a medalha em cima da mesa. Ele falou: “O que é isso?”, minha mãe falou: “Ele foi campeão paulista de jiu-jítsu”. Fiquei dois anos internado, saía, ficava 2 dias em casa e voltava, tomava Benzetacil de 15 em 15 dias, depois com Voltaren de 21 em 21 – recordou Do Bronx.

Ter Charles constantemente internado mudou a rotina da família. Ozana, que trabalhava durante o dia em um colégio em Santos, passava as noites no hospital, onde dormia para fazer companhia ao filho, mas ganhou a ajuda valiosa de um patrão compreensivo.

– Chegou uma hora que não aguentava mais. Dormia no chão lá, escondido porque não podia dormir no hospital, só na cadeira. Tinha hora que não aguentava, deitava no chão. As enfermeiras, muito bacanas, me davam lençol. Quando a enfermeira-chefe chegava, elas chamavam: “Levanta, levanta, a enfermeira-chefe”. Foi muito difícil e graças a Deus e a esse patrão meu, que me ajudava muito. Levava almoço, chegou uma hora que falou: “Fica só com teu filho, não vai trabalhar, não”. Eu falei: “Mas eu preciso do dinheiro”. Ele: “Isso a gente vê depois”. Me ajudou muito, com remédio, em tudo, porque eu passava 15 dias sem ir em casa, passava um mês e assim foi indo.

Charles do Bronx com os pais Francisco e Ozana — Foto: Arquivo pessoal

Charles do Bronx com os pais Francisco e Ozana — Foto: Arquivo pessoal

Aos 18 anos, Charles precisava tomar injeções periodicamente e já estava saturado de viver desta forma. Sentindo-se saudável, tomou a decisão de encerrar o tratamento.

– Decidi largar tudo e focar no esporte. Falei com meu pai que, se fosse para morrer, que morreria feliz. Estou 100% feliz com o que vem acontecendo, não tenho mais nada. Foi a mão de Deus que me guiou.

Após todos os percalços da vida que precisou superar, Charles do Bronx se emociona ao ver onde chegou e olhar para trás ao recordar tudo que passou.

– Já chorei bastante, ver tudo que passei, dificuldades, meu pai deixar de fazer compra, pagar conta de luz, para eu e meu irmão lutarmos jiu-jítsu. As pessoas falavam que eu nunca seria ninguém e olha o que temos, tudo que proporciono aos meus pais. Naquela entrada para o cage, lembro de tudo que passei lá atrás e falo que posso, que sou melhor e acontece. Fiquei dois anos internado, o médico falou para fazermos tratamento de fora. Eu fiquei uns seis meses fazendo, pouco tempo, e falei: não quero isso pra minha vida, quero fazer esporte, ser uma criança normal. Tive fé nisso. Acreditei que podia fazer acontecer, que Deus iria me abençoar. Quantas vezes dormia no hospital, pessoas chorando, entrando e saindo, não dormia à noite. Minha mãe dormia na cadeira do lado da cama, ia trabalhar, eu passava o dia sozinho, meu pai ficava até ela chegar. Parei tudo, não quero injeção, obrigado. Meu pai pegou na minha mão e acreditou, dobrava o joelho e orava.

Amuleto na mão

Em suas últimas três lutas, Charles do Bronx esteve acompanhado por um amuleto especial. Seu pai, Francisco, lhe presenteou com uma pedra e disse que foi com ela que Davi venceu Golias na história bíblica.

– Até me arrepio de falar porque ali foi uma fé que tenho muito no meu Deus. Fui pro monte, peguei pedra lá, e a gente estava na campanha da pedra de Davi. Você sabe que a história de Davi foi muito complicada porque muitos não acreditavam que Davi ia conseguir derrubar aquele gigante. Naquela campanha ali peguei pedras pra todos, orei, consagramos e trouxemos a pedra. Dei a pedra pra ele e falei: “Filho, essa é a pedra de Davi”. Não é dizendo que a pedra é maior do que meu Deus, mas Davi, pela fé, pegou a pedra e derrubou o gigante. O que está acontecendo com Charles é isso. Pela fé está levando essa pedra aí e com certeza vai derrubar o gigante que nem Davi fez com aquele Golias – disse Francisco.

Charles do Bronx, na vitória contra Tony Ferguson, segura pedra dada pelo pai como amuleto — Foto: Getty Images

Charles do Bronx, na vitória contra Tony Ferguson, segura pedra dada pelo pai como amuleto — Foto: Getty Images

– Meu pai deu uma para mim e falou: “Se você acredita, essa é a pedra de Davi. Toda vez que entrar para lutar, vai com ela na mão pedindo para Deus dar sabedoria, força e fé que vai te abençoar”. Eu creio nisso. Davi teve mais, eu tenho só uma. Fico com ela na mão o tempo inteiro. Entro com ela, entrego às pessoas, acabou, pego de volta. Desde que me deu, minha mão tem ficado mais pesada. É a pedra de Davi para derrubar o gigante. Mais uma vez, dia 15 de maio, vou entrar com a pedra na mão, Deus vai me dar sabedoria para entrar na arena, fazer uma grande luta e conseguir uma grande vitória – garantiu Charles, que tem no pai seu grande ídolo.

– É o cara que tirou do bolso dele para fazer meu irmão e eu competirmos, mata e morre por mim, pela família. É o cara que chorou do meu lado no carro quando soube que eu lutaria pelo título, é meu herói. Prometer para ele e poder cumprir com ele vivo vai ser um dos maiores orgulhos da minha vida. Trazer esse cinturão, entregar a ele, abraçar e falar: “Segura que é nosso”. Meu pai é guerreiro, é f***, é diferenciado.

Duelo com Chandler

A sequência de Charles do Bronx é impressionante. São oito vitórias consecutivas na categoria que é considerada a mais difícil do Ultimate. O brasileiro, recordista de finalizações da organização com 14 vitórias desta forma, chega para a maior luta da sua vida embalado por atuações dominantes contra Kevin Lee e Tony Ferguson em 2020. E a confiança não poderia ser maior.

– Vou ser bem sincero, estou tão tranquilo, feliz com a oportunidade. A cada dia que passa vejo o quão perto estou da vitória. Não vou deixar o nervosismo tomar conta, nada disso atrapalhar. São 11 anos de história, vi muitas coisas lá. Grandes nomes brasileiros chegaram, a mídia colocou como campeão, monstro, fenômeno, e ganhavam uma, duas, três lutas e quando pegavam os caras de verdade ficavam para trás. Entrei como promessa, hoje sou realidade. Qual cara ruim que eu peguei? Peguei sempre caras bons, de nome. Perdi, errei, venci, dei a volta por cima, me reinventei e são oito vitórias seguidas. Estou tão perto do sonho que não vou deixar o nervosismo, a pressão, atrapalhar. Sabendo que o Brasil precisa do cinturão me dá mais combustível para chegar lá. Não será só eu dentro do octógono, vai ser a nação brasileira inteira dentro do octógono, pessoas que acreditam no meu sonho. Vou lá buscar esse cinturão. Chegou a hora, meu momento, dia 15 de maio esse cinturão vem para o Brasil.

Charles do Bronx x Michael Chandler fazem a luta principal do UFC 262 — Foto: Reprodução

Charles do Bronx x Michael Chandler fazem a luta principal do UFC 262 — Foto: Reprodução

Sobre Michael Chandler, ex-campeão do Bellator, Charles declarou que o UFC não precisava ter buscado fora da organização um nome para substituir Khabib Nurmagomedov, que se aposentou.

– Ele foi contratado do Bellator pelo cinturão, o UFC foi em busca de um cara porque queriam alguém de fora. Não precisava, tinham muitos caras prontos, eu vinha de seis vitorias seguidas, poderia ficar ali para substituir Khabib ou Conor. O UFC buscou ele pra isso, veio para ser o próximo desafiante ao cinturão. Acabou não ocorrendo, lutou contra um cara que só correu e ele fez o que sabe melhor: botar a mão pesada e fazer o trampo acontecer. A luta certa pelo título era Charles x Poirier, que aceitou enfrentar o Conor, por dinheiro, cada um sabe o que é melhor para si. Tenho 11 anos de história, oito vitórias seguidas, vou lutar contra o Chandler que foi o cara que o UFC buscou para lutar pelo título. Não tem desvantagem para nenhum dos dois. Venho no melhor momento da vida, da carreira, ou é por nocaute ou finalização. A única que foi nos pontos vocês viram o que aconteceu. É uma grande luta, uma grande oportunidade para mim.

Agora, a um passo do cinturão tão sonhado, Charles quer cumprir a promessa que fez ao pai e trazer o cinturão do peso-leve para o Brasil.

– Todo lutador do UFC tem o sonho de ser campeão, prometi ao meu pai, falei que traria o cinturão para a favela, para os meus amigos. Estou tão perto disso, numa fase tão boa, isso com certeza vou cumprir essa promessa. Vai me trazer alegria gigantesca trazer o cinturão para o Brasil, para casa, mostrar que a galera da comunidade pode ser alguém sem precisar fazer coisas erradas. Isso me dá um legado maior, sou o maior finalizador, posso ser campeão dos leves. Vai abrir outras portas sendo campeão, um peso maior nas costas, acaba sendo alvo, mas abre grandes portas para mim – finalizou.

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Fonte: Ge – Globo Esporte.

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