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Turbulências à frente

Por Marcus Vinicius De Freitas

Turbulências à frente
Turbulências à frente

Redação Publicado em 22/09/2021, às 00h00 - Atualizado às 09h12


Por Marcus Vinicius De Freitas

Turbulências à frente

A Assembleia Geral das Nações Unidas, que ocorre em Nova Iorque, em meio a uma série de desafios globais, revela a necessidade de se prestar atenção a algumas turbulências que ocorrerão nos próximos anos, cujos impactos serão marcantes e serão sentidos mais intensamente devido à ausência de lideranças capazes de administrar crises e buscar soluções coletivas.

A narrativa de Donald Trump, a “America First”, substituída pela “America is Back”, de Joe Biden, revela dois lados da mesma moeda. Quem esperava grandes mudanças por parte de Joe Biden se equivocou profundamente. Houve uma mudança de estilo, porém o conteúdo continua igual, com os Estados Unidos tentando ser mais assertivos globalmente para garantir sua posição de primazia. Ocorre, no entanto, que se a fórmula já surtira pouco efeito com Trump, com Biden não tem sido. A saída atabalhoada dos norte-americanos do Afeganistão, sem a devida coordenação com os aliados, gerou um enorme problema humanitário no país asiático, que pouco se beneficiou efetivamente da presença dos Estados Unidos ao longo dos últimos vinte anos. Ademais, a nação mais poderosa militarmente apequenou-se diante dos barbudos radicais do Talibã. Quem poderia imaginar que, em pouco menos de um mês, o Talibã conseguiria descontruir a imagem de invencibilidade do exército mais poderoso do mundo?

Nos últimos dias, o acordo de contenção à China na Ásia envolvendo Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, uma “punhalada nas costas”, segundo os franceses, também evidenciou que muitas das políticas implementadas pelos Estados Unidos já não contam com o mesmo tipo de entusiasmo do passado. Apesar de oferecer à Austrália o acesso a submarinos nucleares, o que facilitará a possibilidade de o país desenvolver armas nucleares, apesar de ser membro do Tratado de Não-Proliferação, a Austrália – que é muito parecida com o Brasil e Canadá em sua dependência da venda de commodities à China – será surpreendida com o fato de que o mercado norte-americano não terá o mesmo apetite que o chinês para a compra de seus produtos. Aqui surge uma oportunidade interessante para o Brasil como eventual substituto da Austrália.

Este clima de guerra fria requentada, porém, não é bom à comunidade global. Para aqueles que viveram sob a tensão daquele trágico período da história recente, a recordação do iminente confronto entre as principais duas potências globais – Estados Unidos e União Soviética, na ocasião – que forçava o mundo a uma bipolaridade nada saudável e que, de fato, manteve, por um bom tempo um ambiente global de estresse constante, não é nada auspiciosa. De fato, reviver aquela tensão – desta vez com China e Estados Unidos – é temerosa. Por isso, é importante observar se esta cartada de contenção à China naquela região do globo agregará novos parceiros, além dos tradicionais Japão e Coreia do Sul. Por enquanto, parece um tiro no escuro. Mas é preocupante assistirmos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália tentando recriar uma nova guerra fria com a China.

Outra turbulência é a questão migratória global. O mundo nunca teve tantos refugiados como atualmente. A situação no Afeganistão deverá incrementar substancialmente este desafio porque parte da população descontente com o Talibã – ou aquela que esteve mais diretamente próxima dos países aliados durante os vinte anos de ocupação – ressentir-se-á da mudança da situação e buscará abrigo em outros países. O isolamento geográfico dos Estados Unidos lhes permite uma administração mais tranquila da situação, porém será na Europa, já combalida pela situação econômica e por crises migratórias anteriores, onde o problema será, de fato, mais sentido. O medo do terrorismo e do fundamentalismo de determinados grupos islâmicos aumentarão a insegurança coletiva. Com isso, o monitoramento de indivíduos deverá aumentar e, paulatinamente, direitos como privacidade e sigilo serão perdidos de maneira irreversível. O terrorismo gera insegurança e, com isto, aniquila direitos individuais.

O desastre econômico da pandemia da Covid-19, ocorrida justamente no início da quarta revolução industrial, que propugna que o emprego deverá ser substituído pela automação e o uso intensivo da tecnologia, é uma enorme preocupação. A não ser que a humanidade descubra novas maneiras de utilizar a mão-de-obra, corremos o sério risco de ver um irreversível empobrecimento coletivo em razão daquele que é um dos elementos definidores do caráter humano: o trabalho. Enquanto as políticas públicas não forem ajustadas para estimular o crescimento econômico e o emprego, esta situação será o maior legado desta pandemia. Resultados pífios e medidas que não estimulem o empreendedorismo e facilitem a capacidade de realizar negócios poderão aniquilar mais vidas do que toda a pandemia. É por esta razão que a vacinação em escala global é importante para diluir a instabilidade da equação fatídica de novas cepas e infecções.

Enquanto as lideranças políticas não atentarem à seriedade destes problemas, o buraco poderá tornar-se cada vez mais profundo. O futuro da humanidade começa hoje.

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*Marcus Vinicius De Freitas
Professor Visitante, China Foreign Affairs University
Senior Fellow, Policy Center for the New South
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