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‘Tragédia anunciada’: os 5 incêndios que já consumiram a Cinemateca

O incêndio que atingiu o acervo da Cinemateca Brasileira na noite de quinta (29/7) foi o quinto que atingiu a instituição responsável por guardar, preservar e

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Redação Publicado em 31/07/2021, às 00h00 - Atualizado às 09h32


O incêndio que atingiu o acervo da Cinemateca Brasileira na noite de quinta (29/7) foi o quinto que atingiu a instituição responsável por guardar, preservar e difundir a produção audiovisual brasileira.

A parte atingida pelo fogo é um anexo da Cinemateca que fica na Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo. Ali, há salas com cópias de longas e curtas-metragens de várias épocas. A sede principal da Cinemateca fica na Vila Clementino, na Zona Sul da cidade.

A tragédia foi anunciada. Ex-funcionários vinham há meses alertando sobre a situação precária da instituição.

Por ter filmes antigos a base de nitrato de celulose, a preservação e a revisão periódica são importantes para evitar incêndios.

O nitrato de celulose pode causar combustão espontânea, com a capacidade de incendiar-se apenas com o calor. Quanto mais velho for o filme, menor será sua temperatura de ignição. Além disso, a umidade contribui para a deterioração do suporte de nitrato.

Mas, por viver uma crise há anos, a Cinemateca, que é controlada pelo governo federal, não tem tido investimentos no setor de preservação.

Depois que o contrato de gestão que a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto tinha para administrar a instituição terminou em 2019, funcionários que cuidavam deste e outros setores foram demitidos.

A história não é nova. Por ter enfrentado diversas crises, a instituição que começou como um clube fundado por intelectuais que estudavam cinema e tinham paixão pela preservação do audiovisual brasileiro já teve de apagar outros incêndios.

1957

“Completamente destruída pelo fogo a Cinemateca do Museu de Arte Moderna”, diz uma matéria publicada no dia 29 de janeiro de 1957 no jornal O Estado de S. Paulo.

O texto diz que por volta das 22h30 do dia anterior, “irrompeu violento incêndio” no 13º andar do edifício da rua 7 de Abril, onde naquela época ficava a Cinemateca Brasileira e o MAM.

No ano anterior, a Cinemateca havia se separado do MAM para obter independência jurídica e administrativa e conseguir apoio financeiro público. Finalmente havia se tornado a Cinemateca Brasileira (antes, era a Filmoteca, um departamento de cinema dentro do MAM).

“Ali, estavam guardadas películas dos primórdios do cinema nacional, documentários da vida do país” dos últimos 30 anos, diz o texto, “entre fitas do interior e películas alemãs, francesas, inglesas, russas e norte-americanas”.

O incêndio foi causado pela autocombustão sofrida pelos filmes em suporte de nitrato de celulose.

Naquele ano, comovidas pelo incêndio, entidades nacionais e estrangeiras fizeram doações para ajudar a Cinemateca. Os filmes, por sua vez, foram distribuídos em espaços dentro do Parque do Ibirapuera. A Cinemateca passou a funcionar no último andar do prédio da Bienal.

Cinemateca brasileira guarda o maior acervo cinematográfico da América do Sul — Foto: Reuters

Cinemateca brasileira guarda o maior acervo cinematográfico da América do Sul — Foto: Reuters

1969

Ainda dentro do Parque Ibirapuera, a Cinemateca sofreu novo revés em 1969. Com pouco financiamento, a instituição se viu novamente sem possibilidades de impedir o processo de deterioração dos filmes.

O incêndio atingiu a guarita do portão 9 do Parque Ibirapuera, onde estava parte do acervo.

“O cubículo do portão vôou pelos ares na manhã de anteontem com a força do fogo que lá dentro consumia cerca de 350 filmes da Cinemateca de São Paulo”, diz reportagem da Folha de S. Paulo do dia 20 de fevereiro daquele ano.

“Não restou nada das 200 latas de película, entre as quais algumas obras-primas do cinema, como o ‘Canto do Mar’, de Cavalcanti.” Segundo a reportagem, sobrou apenas “uma pilha de latas queimadas e um monte de cinzas”.

“Às 8h30, o zelador Jaime Fernandes Ferreira caminhava em direção à churrascaria nas proximidades quando ouviu um ruído de coisa estalando. Ao voltar-se viu fumaça saindo das frestas da vidraça entreaberta. No mesmo instante deu-se a explosão e um rolo de fogo subiu a 15 metros, chamuscando as árvores vizinhas.”

Por temer novos incêndios, a administração do Ibirapuera construiu pequenos depósitos ao lado da sede para armazenar os rolos de filme.

A reportagem destaca como, naquela época, assim como agora, as verbas aprovadas para a Cinemateca haviam sofrido enormes reduções, e funcionários, sozinhos, tentavam preservá-la.

“Nenhuma providência até o momento foi tomada para resguardar o pouco que ainda sobra da iniciativa de Paulo Emilio Gomes de dotar São Paulo de um museu vivo, que em uma época foi respeitado no mundo inteiro”, diz.

Matéria do jornal O Estado de S. Paulo registra incêndio de 1957 — Foto: Acervo O Estado de S. Paulo

Matéria do jornal O Estado de S. Paulo registra incêndio de 1957 — Foto: Acervo O Estado de S. Paulo

1982

Mais um incêndio em um depósito de nitrato no Ibirapuera. Pouco mais de 1,5 mil filmes foram perdidos quando o depósito número 4 foi incendiado.

Na época, funcionários e apaixonados pela Cinemateca já haviam desenvolvido um sistema de conservação e catalogação.

O incêndio de 1982 levou a conversas de incorporação da Cinemateca ao poder público, respeitando sua autonomia. Um lugar mais seguro para guardar o acervo de nitrato também seria necessário.

2016

Dos anos 1980 aos anos 2000, a Cinemateca passou por enormes transformações.

A sede foi transferida para o antigo matadouro de São Paulo, na Vila Clementino, em 1988, resolvendo um de seus grandes problemas — a falta de espaço.

Em 2003, a Cinemateca é incorporada ao Ministério da Cultura, com administração da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) e dá um grande passo à frente em suas atividades.

Em 2013, no entanto, a demissão do diretor Carlos Magalhães pela então ministra da Cultura Marta Suplicy dá início a uma crise institucional, que só se agravou desde então.

Na época, uma auditoria paralisou os repasses à SAC, organização que recebia verbas do governo federal por um convênio que previa gestão conjunta.

Neste meio tempo, a Cinemateca passou meses sem diretor, funcionou em épocas com um quinto do número original de funcionários, teve o laboratório de imagem e som (que faz preservação e restauração) parado, funcionários sem salário e uma gestão organizada a partir de remendos.

O incêndio que consumiu parte de seu acervo desta vez aconteceu em fevereiro de 2016, em um armazenamento externo de nitrato.

Foram mais de mil rolos de filmes perdidos. Segundo o site da instituição, o fogo destruiu 731 dos 44 mil títulos guardados na Cinemateca.

Depois disso, a Cinemateca foi envolvida em mais um imbróglio que diz respeito à sua administradora.

Em 2018, durante a gestão de Sérgio Sá Leitão, ministro da Cultura do governo Michel Temer (PMDB), a administração da Cinemateca foi totalmente transferida para a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que geriu a emissora pública TVE no Rio de Janeiro. No fim de 2019, nova interrupção, com dezenas de funcionários demitidos.

Desde então, não houve novo chamamento público para a escolha de uma instituição substituta à Acerp. Em 2020, quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou a ida de Regina Duarte à Cinemateca (o que nunca se concretizou), a Secretaria de Cultura informou a BBC News Brasil que o processo de chamamento público que iria selecionar uma nova organização para manter e gerir a Cinemateca estava “em andamento, finalizando a fase interna para publicação em breve”, sem responder sobre prazos.

Foto mostra sala da Cinemateca, na Vila Leopoldina, após enchente em fevereiro — Foto:  Cinemateca Brasileira/Divulgação

Foto mostra sala da Cinemateca, na Vila Leopoldina, após enchente em fevereiro — Foto: Cinemateca Brasileira/Divulgação

2021

Dentro desse contexto de crise aguda da Cinemateca e ex-funcionários avisando há meses sobre seu sucateamento, um incêndio de grandes proporções atingiu o anexo na Vila Leopoldina na noite de quinta (30/7).

O fogo teria começado no teto do galpão, segundo as pessoas que acionaram a emergência.

Ainda não se sabe qual parte do acervo se perdeu neste quinto incêndio. Um manifesto divulgado por ex-funcionários da instituição lista itens do acervo que estava armazenado na Vila Leopoldina e que pode ter sido perdido ou afetado pelo incêndio.

Itens como todo o acervo documental das polícias do audiovisual brasileiros, como o Arquivo Embrafilme. Também havia ali parte do acervo de documentos do arquivo Tempo Glauber, “inclusive duplicatas da biblioteca de Glauber Rocha e documentos da própria instituição”, diz o manifesto.

O texto cita também o acervo da distribuidora Pandora Filmes, “matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, metragens, todos potencialmente únicos”.

Reportagem da BBC News Brasil sobre uma enchente que atingiu o mesmo galpão no ano passado havia mostrado que ela provocou danos em 113 mil DVDs da Programadora Brasil, um projeto de difusão do cinema brasileiro fora do circuito comercial.

O manifesto dos trabalhadores da Cinemateca classifica o incêndio de quinta (29/7) como um “crime anunciado, que culminou na perda irreparável de inúmeras obras e documentos da história do cinema brasileiro”.

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Fontes: G1 – Globo.

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