Diário de São Paulo
Siga-nos

Trabalho escravo: com portaria, governo fez mudança que tramita no Congresso há 14 anos

Há 14 anos, tramitam no Congresso Nacional propostas que alteram o conceito de trabalho escravo na legislação brasileira. A mudança, que enfrenta resistência

Trabalho escravo: com portaria, governo fez mudança que tramita no Congresso há 14 anos
Trabalho escravo: com portaria, governo fez mudança que tramita no Congresso há 14 anos

Redação Publicado em 22/10/2017, às 00h00 - Atualizado às 08h24


Há 14 anos, tramitam no Congresso Nacional propostas que alteram o conceito de trabalho escravo na legislação brasileira. A mudança, que enfrenta resistência para aprovação, foi efetivada pelo governo Michel Temer, na última semana, por meio de uma portaria – instrumento que não exige consulta ao Poder Legislativo.

A medida, publicada na segunda-feira (16), não muda a lei brasileira, mas altera os parâmetros que devem ser observados na fiscalização. Antes da mudança, eram usados conceitos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Código Penal para determinar o que é trabalho escravo.

A lei brasileira define como condição análoga à de escravo:

  • Submissão a trabalhos forçados;
  • Jornada exaustiva;
  • Condições degradantes de trabalho;
  • Restrição da locomoção em razão de dívida.

Agora, a portaria estabelece quatro pontos específicos para definir trabalho escravo:

  • Submissão a trabalho exigido sob ameaça de punição;
  • Restrição de transporte para reter trabalhador no local de trabalho em razão de dívida;
  • Uso de segurança armada para reter trabalhador em razão de dívida;
  • Retenção da documentação pessoal do trabalhador.

Entidades que representam auditores fiscais do trabalho, juízes e procuradores criticam a mudança feita pelo governo e avaliam que a nova regra é um retrocesso no combate ao trabalho escravo no país.

O atual conceito de trabalho escravo, previsto no Código Penal, foi instituído em 2003. No mesmo ano, foi apresentado um projeto pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) que visava promover alterações nas normas.

A proposta foi aprovada no Senado em 2005 e seguiu para a Câmara, onde ficou parada por dez anos, até ser aprovada pela Comissão de Agricultura. Desde 2015, não houve andamento na tramitação.

Outro texto, que traz mudança semelhante à colocada em prática pela portaria do governo, foi apresentado em 2015 pelo deputado Dilceu Sperafico (PP-PR). Na apresentação da proposta, ele trouxe a mesma justificativa dada agora pelo governo, de que a mudança traria segurança jurídica.

“A legislação brasileira não fornece critérios claros que ajudem a caracterizar criminalmente o trabalho análogo ao de escravo. (…) Justamente essa falta de definição dos conceitos causa temor e insegurança jurídica”, argumentou o deputado, quando o texto foi apresentado.

Outros dois projetos, de 2012 e 2013, também têm o objetivo de alterar o artigo do Código Penal que conceitua o trabalho escravo.

Ilegal

Na avaliação do procurador-chefe da assessoria jurídica do Ministério Público do Trabalho, Márcio Amazonas, a edição da portaria foi a estratégia encontrada pelo governo para conseguir mudar as regras, diante da resistência encontrada no Congresso.

“A alteração do conceito do trabalho escravo contemporâneo é um pleito de décadas da bancada ruralista do Congresso Nacional. Mas os projetos não caminham porque fazer uma alteração que traz um retrocesso tão grande é algo muito constrangedor do ponto de vista político”, disse.

Amazonas argumenta que a medida é ilegal por desrespeitar a hierarquia das normas brasileiras. Segundo ele, uma portaria não pode trazer regra que contradiga o que está definido em lei ou em convenções internacionais ratificadas pelo Brasil.

“Uma canetada do dia para a noite do ministro do Trabalho altera um conceito que é disciplinado pelo Código Penal e por convenções da OIT. Uma norma de hierarquia muito frágil está tendo o propósito de alterar conceitos previstos por normas muito sólidas”, afirmou.

Ideologia

Para o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, que reúne mais de 200 deputados e senadores, os projetos que tratam desse tema não avançam por conta de um fator ideológico.

“Toda vez que se debate esse assunto, ele trava porque tem fator ideológico e interesses internacionais para dificultar o setor produtivo. Toda vez há uma reação, mas precisa ter esse enfrentamento. O ideal é que se pare de legislar por portaria. O Congresso tem que legislar por lei”, defendeu.

Deputado Nilson Leitão (PSDB) em comissão da Câmara (Imagem de arquivo) (Foto: Lúcio Bernardo Junior/Câmara dos Deputados)

Deputado Nilson Leitão (PSDB) em comissão da Câmara (Imagem de arquivo) (Foto: Lúcio Bernardo Junior/Câmara dos Deputados)

Entretanto, diante da hipótese de o presidente Michel Temer recuar após a repercussão negativa, Leitão disse esperar que isso não aconteça.

“Espero que ele não recue e que chame todo mundo para uma mesa redonda com o setor empregador, a frente parlamentar e todas as partes envolvidas para discutir com muita democracia, sem ideologia”, declarou.

ONU no Brasil condena medida que dificulta combate ao trabalho escravo

ONU no Brasil condena medida que dificulta combate ao trabalho escravo

O que mudou com a portaria

  • Antes: Fiscais usavam conceitos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Código Penal para determinar o que é trabalho escravo. Entre os pontos previstos na lei brasileira estão submissão a trabalhos forçados, jornada exaustiva e condições degradantes, além de restrição da locomoção em razão de dívida.
  • Agora: Portaria estabelece quatro pontos específicos para definir trabalho escravo: submissão a trabalho exigido sob ameaça de punição; restrição de transporte para reter trabalhador no local de trabalho em razão de dívida; uso de segurança armada para reter trabalhador; retenção da documentação pessoal.
  • Antes: Para a comprovação da condição análoga à escravidão, o auditor fiscal deveria apenas elaborar um Relatório Circunstanciado de Ação Fiscal.
  • Agora: Há exigência de anexar um boletim de ocorrência policial ao processo que pode levar à inclusão do empregador na “lista suja”.
  • Antes: A ‘lista suja’ era organizada e divulgada pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae).
  • Agora: Organização fica a cargo da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) e divulgação será realizada por “determinação expressa” do ministro do Trabalho.
Compartilhe  

últimas notícias