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Testemunha não tem direito de ficar calado

A CPI da Covid segue causando polêmica e criando todo tipo de engenharia jurídico-política que se permite em um Estado Democrático de Direito. A Comissão que

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Redação Publicado em 17/05/2021, às 00h00 - Atualizado às 08h34


A CPI da Covid segue causando polêmica e criando todo tipo de engenharia jurídico-política que se permite em um Estado Democrático de Direito. A Comissão que visa apurar omissões no enfrentamento à pandemia da Covid-19, em andamento no Senado Federal, tem como relator o Senador Renan Calheiros, o que já tem sido motivo de muita discussão, uma vez que este tem um filho Governador de Estado e que poderá, se houver ampliação das apurações, ser investigado e até convocado a depor na CPI, o que geraria a suspeição daquele.

Ocorre que, por enquanto, o foco principal das investigações é a omissão do Governo Federal no enfrentamento à pandemia, em atos relacionados com a recusa de compra de vacinas e insumos, negligência na condução das políticas de enfrentamento, entre outros, o que engloba, em tese, os setores do Ministério da Saúde e a própria Presidência da República, o que traz como centro de toda controvérsia e como depoimento mais aguardado o do ex-Ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello.

A preocupação do governo e do próprio depoente, com a sua participação na CPI é tão grande que a Advocacia-Geral da União ingressou com Habeas Corpus preventivo no STF (atribuição da AGU que, por si só, é questionável), com o intuito de permitir que o ex-Ministro possa ficar em silêncio durante o depoimento sem o risco de ser preso, o que foi concedido pelo Ministro Ricardo Lewandowiski, ao entendimento de que Pazuello poderá deixar de responder perguntas que possam incriminá-lo, bem como que não deve ser constrangido durante o ato.

Em suma, na decisão do Ministro Ricardo Lewandowiski, do Supremo Tribunal Federal, o ex-Ministro Pazuello é obrigado a comparecer para depor na CPI, uma vez que convocado como testemunha, mas poderá optar por não responder às perguntas que possam, de alguma forma, incriminá-lo, devendo, no entanto, responder e falar a verdade quanto aos demais temas, além do que, não poderá sofrer constrangimentos físicos ou morais, como ameaças de prisão ou de processo, no caso de estar atuando no exercício regular dos seus direitos.

A questão que se coloca diante desse fato é sobre até onde vai o direito de uma testemunha em omitir fatos que saiba, seja em razão do cargo que ocupou ou não, o que abre um perigoso precedente, uma vez que, no nosso ordenamento jurídico, a regra é que testemunha tem o dever de falar a verdade, além de não pode se omitir ou deixar de responder a qualquer das perguntas feitas, sob pena de praticar o crime de falso testemunho, além de ainda poder configurar o crime de desobediência. Vejamos.

Todo depoimento é uma manifestação do conhecimento, maior ou menor, acerca de um determinado fato. […] E, por isso, o depoimento em juízo é dever de todos, como regra, dispensando-se algumas pessoas somente em consideração a certos valores e a certas situações, passíveis, aos olhos do legislador, de impedir uma correta e fiel reprodução da realidade histórica. A primeira parte do art. 206 do CPP assevera que “a testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor”. Já no art. 203, encontra-se a referência feita diretamente ao compromisso de dizer a verdade, nestes termos: “a testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado […]”. […] Assim, em regra, todos têm o dever de depor, decorrendo daí também o dever de dizer a verdade, conforme imposição da lei, única autorizada a excepcionar as hipóteses em que esse dever não será exigido de determinadas pessoas em determinadas situações concretas.¹

Diversamente do que ocorre com a testemunha, por lei, a prerrogativa do silêncio em juízo (leia-se aqui também CPI) é sempre do réu, do acusado, uma vez que, como forma de manifestação da sua autodefesa, pode optar por calar-se, tal como lhe faculta o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, sem que do exercício dessa prerrogativa fundamental se possa extrair qualquer presunção em seu desfavor. O Código de Processo Penal (legislação aplicada às CPIs), em seu artigo 186, prevê expressamente que “depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas” e, ainda, que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.²

Além disso, o Código Penal, em seu artigo 342, traz o crime de falso testemunho, cujo texto é expresso em afirmar que “fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo”, cuja pena é de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e, multa, o que demonstra claramente a obrigatoriedade da testemunha não poder se omitir e falar a verdade, o que, por si só, contradiz, com a devida vênia, a decisão do Ministro Lewandowiski, no referido caso.

Como se vê, a testemunha não tem a prerrogativa de ficar em silêncio durante um depoimento, além da obrigação de dizer a verdade sob pena de caracterização do crime de falso testemunho, razão pela qual, com a devida vênia à autoridade do Eminente Ministro do STF, Ricardo Lewandowiski, a decisão é equivocada, uma vez que cria uma excludente de ilicitude inexistente no ordenamento jurídico, que é a possibilidade da testemunha ficar em silêncio toda vez que algo possa incriminá-la, prerrogativa que a legislação só confere aos réus, o que, por certo, podemos extrair desse tabuleiro que o ex-Ministro Pazuello, numa antecipação de jogada, eventualmente, já se coloca na condição de investigado e acaba por atrair, de modo equivocado, todos os holofotes para si.

____________________

¹ OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 404-406.
² CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 180.

Amilton Augusto

Advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo. Vice-Presidente da Comissão de Relacionamento com a ALESP da OAB/SP. Membro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ. Membro fundador da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (2015). Membro fundador e Diretor Jurídico do Instituto Política Viva. Membro do Conselho Consultivo das Escolas SESI e SENAI (CIESP/FIESP). Coautor da obra coletiva Direito Eleitoral: Temas relevantes – org. Luiz Fux e outros (Juruá,2018).  Autor da obra Guia Simplificado Eleições 2020 (CD.G, 2020). Coautor da obra Dicionário Simplificado de Direito Municipal e Eleitoral (Impetus, 2020).  Palestrante e consultor. E-mail: [email protected].
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