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Raquel Marques: Política do Cuidado é um caminho prático e rápido para soluções na cidade

O meu principal norte na vida pública é o que passei a chamar de Política do Cuidado. Mas eu gosto de logo de cara esclarecer que não se trata de uma ideia

Raquel Marques: Política do Cuidado é um caminho prático e rápido para soluções na cidade
Raquel Marques: Política do Cuidado é um caminho prático e rápido para soluções na cidade

Redação Publicado em 13/11/2020, às 00h00 - Atualizado às 15h47


Política do Cuidado é um caminho prático e rápido para soluções na cidade

O meu principal norte na vida pública é o que passei a chamar de Política do Cuidado. Mas eu gosto de logo de cara esclarecer que não se trata de uma ideia filosófica fofa e utópica de um mundo de bosques verdes e rios cristalinos. É uma estratégia de atuação muito prática cujo objetivo é produzir resultados rápidos e impactantes na vida das pessoas em curto espaço de tempo.

A Política do Cuidado se baseia em trabalhar com pessoas, instituições e modelos que já existem e que estão acostumados a atuar em cenários caóticos resolvendo problemas práticos.

Vamos trazer um contexto com exemplo. Eu ajudo a mobilizar e viabilizar a construção de ciclovias em todos os lugares onde isso seja possível. Isso porque pesquisa da CET mostra que nas vias onde existe malha cicloviária, os acidentes diminuem em até 30%, pois a velocidade média dos motoristas diminui e eles dirigem com mais atenção.

Neste cenário já temos uma maior proteção da vida por si só. Mas vai muito além. Com menos acidentes, o SUS é menos acionado e o SAMU fica livre para atender outros chamados urgentes. Mais vidas preservadas.

Ainda pensando na questão da ciclovia.  Mais bicicletas significam menos carros, o que resulta em menos dióxido de carbono no ar. Todo ano morrem 5 mil pessoas por conta da poluição atmosférica em São Paulo.

Caso os padrões de poluição de 2011 sejam mantidos, poderão ocorrer mais de 246 mil óbitos entre 2012 e 2030, além de cerca de 953 mil internações hospitalares públicas e um gasto público estimado de mais de R$1,6 bilhão em internações.

Esse fio de novelo que começa se desenrolando com uma ciclovia construída e, por conta disso, termina em uma pessoa tendo um AVC sendo atendida rapidamente pelo SAMU é a Política do Cuidado. Outra definição seria: colocar o ser humano como prioridade nas decisões cotidianas dentro das políticas institucionais.

Novelo que se desenrola 
Quando se fala em olhar holístico a imagem já é de um incenso aceso, pessoas descalças e falando em chacras. Mas o significado real é um olhar amplo, com vários pontos de vista, com atenção a muitos ângulos. E São Paulo precisa de um olhar holístico para suas questões complexas e que fuja do modelo binário de dois extremos sem pontes de diálogo.  

Voltemos ao contexto prático. Mais de 60% dos deslocamentos diários na cidade acontecem em um diâmetro de 5 km. É absolutamente possível para boa parte da população que os deslocamentos não sejam feitos como são.

Em outras palavras, diminuir consideravelmente o uso do carro. E aí entramos novamente naquele círculo onde se têm menos acidentes, mais vidas salvas, mais médico livre, mais ambulância disponível, um ar mais limpo, menos doenças respiratórias, mais dinheiro no orçamento para outras áreas.

E assim vai. Cada fio de novelo que você desenrola de forma adequada na cidade acaba se tornando um cuidado com a vida.

A Política do Cuidado traz para cidade o olhar que ela sempre precisou ter, que é uma intersetorialidade funcionando com eficiência. Conexão de diferentes pastas da prefeitura.

Aos vereadores, cabe fazer essa fiscalização e a contribuição para que esses sistemas que já estão postos na cidade funcionem de forma mais eficiente.

O amor é mal pago 
Um eixo no qual a Política do Cuidado se foca é na valorização financeira e moral das pessoas que dão suporte à vida, mas que são esquecidas ou não recompensadas. Falo das mulheres, mães, ativistas, responsáveis por crianças e idosos, por pessoas com deficiência, agricultores e cientistas.

Esses profissionais em geral estão enquadrados em “trabalho com amor”, que no português claro significa “profissional fundamental mal remunerado”.  E, na enorme maioria das vezes, trata-se de uma mulher.

Por exemplo: antigamente, ser professor significava ser um homem bem remunerado. Hoje, a maioria dos professores, principalmente na educação básica, são mulheres.

Não é por acaso que quando a educação passa a ser um direito e, portanto, um trabalho relacionado ao cuidado, essa função passa a ser exercida por mulheres. E, ao mesmo tempo, começa a ser desvalorizada.

Existe um fenômeno de precarização dos direitos trabalhistas toda vez que uma profissão passa a ser exercida majoritariamente por mulheres. Acredito que pra melhorar as condições de trabalho dos professores, precisamos, antes de mais nada, valorizar o cuidado na infância. Colocar as crianças como o centro das questões que movem nossas decisões.

E precisamos também debater e combater o machismo que precariza os salários das professoras. A desvalorização dos saberes femininos é uma forma de nos enfraquecer e de pagar menores salários para essas profissionais, que são essenciais à educação e aos cuidados na infância.

A Política do Cuidado tem como pilar fundamental valorizar o trabalho das professoras e com isso ver uma cadeia de aspectos da sociedade melhorar.

Estado mínimo, cuidado inexistente 
Um exemplo da total “política do descuidado” é a pandemia do covid-19. As nossas crianças estão abandonadas. Os empregadores não assumem parte da responsabilidade sobre elas, o Estado fechou todos os equipamentos de cuidado das crianças sem nenhuma política compensatória e as famílias, especialmente as mães, foram triplamente sobrecarregadas durante uma crise sanitária sem precedentes.

Vou sempre repetir: as crianças não são apenas uma responsabilidade da mãe ou de sua família. Elas são responsabilidade da família, do Estado e da sociedade, de acordo com o Eca e com a Constituição.

Você. Mulher. Mãe. Não tenha dúvidas: quando o estado é mínimo, as mulheres arcam com sua ausência.

O desemprego medido pela pesquisa Pnad Contínua, do IBGE, foi de 12% entre homens e 14,9% entre mulheres no segundo trimestre de 2020. Cerca de 7 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho na última quinzena de março, contra 5 milhões de homens. Trata-se do pior índice para as mulheres nos últimos 30 anos. É hora de interromper o retrocesso e revolucionar essa cidade por meio da valorização da mulher e da Política do Cuidado.

Raquel Marques é feminista, mãe e bissexual. Ativista há 20 anos, a sanitarista, mestre em Saúde Pública e Doutora em Medicina Preventiva acredita em ações e reflexões para para construir um mundo melhor. É uma das fundadoras da Artemis, a primeira ONG brasileira a incidir concretamente sobre políticas públicas pela erradicação da violência obstétrica. Co-deputada estadual, foi eleita em 2018 com a Bancada Ativista para o primeiro mandato coletivo da história do Estado de São Paulo. Atualmente cursa Direito.

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