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Palmeirense que viu tio morrer de infarto em 99 conta com torcida dele por bi da Libertadores

Na descida para o vestiário do antigo Palestra Itália, ao final de um primeiro tempo sem gol contra o Deportivo Cali, da Colômbia, Zinho resumiu o que viria

Palmeirense
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Redação Publicado em 29/01/2021, às 00h00 - Atualizado às 18h45


Na final contra o Deportivo Cali, taxista passou mal na arquibancada ao lado do sobrinho e não resistiu

Na descida para o vestiário do antigo Palestra Itália, ao final de um primeiro tempo sem gol contra o Deportivo Cali, da Colômbia, Zinho resumiu o que viria pela frente naquela noite de 16 de junho de 1999, a noite do (até aqui) único título do Palmeiras na Libertadores.

– Esse segundo tempo é a vida – disse o então camisa 11.

Galvão Bueno concordou na transmissão da TV Globo: disse que estava em jogo a vida do Palmeiras, em busca de uma vitória por dois gols de diferença – ou pela diferença de um gol, para forçar a decisão nos pênaltis.

A expressão romantizada (um tanto exagerada, mas comum ao futebol), era literal naquele momento para um torcedor de 42 anos. A seis quilômetros dali, estava verdadeiramente em jogo uma vida palmeirense.

A vida de Vagner Sposito, motorista acostumado a rodar a cidade de São Paulo em seu próprio táxi, mas que, naquela quarta-feira, acabou sendo passageiro dentro de uma ambulância, no trajeto do estádio ao Instituto do Coração (Incor), ao infartar no começo da partida.

– Meu tio comentou que estava passando mal depois de uma cabeçada do Alex pra fora. Eu pedi pra ele se sentar. Um tempinho depois, perguntei se ele estava bem, ele tremia. Eu perguntei se queria que chamasse algum policial, e ele disse que sim. Ali eu vi que era sério – lembra o sobrinho Luiz Fernando Sposito, que tinha 18 anos e viu o cabeceio de Alex, aos 11 minutos, espremido ao lado do tio e de dois amigos do tio, num espaço em que mal cabia uma pessoa.

O Palestra Italia estava abarrotado. Oficialmente, com um público de 32 mil pessoas. Mas quem passa os olhos pelas imagens do jogo tem a certeza de que havia muito mais.

Zinho fala no intervalo da final da Libertadores de 1999: "Esse segundo tempo é a vida"

Zinho fala no intervalo da final da Libertadores de 1999: “Esse segundo tempo é a vida”

Uma minúscula parte desse público era de torcedores do Deportivo Cali, separados somente por um cordão policial, o que tinha tornado fácil, antes de a bola rolar – e do primeiro aviso do coração –, a tarefa do taxista de ajudar o sobrinho a trocar uma camisa com um colombiano.

Um objeto que Luiz Fernando guarda até hoje e que lhe traz à memória não uma lembrança triste, mas a estreita relação entre dois palmeirenses, entre um sobrinho e um tio que era quase segundo pai.

Luiz Fernando com a camisa da campanha de 1999 e a camisa que seu tio trocou com um torcedor do Deportivo Cali, na final — Foto: Arquivo Pessoal

Luiz Fernando com a camisa da campanha de 1999 e a camisa que seu tio trocou com um torcedor do Deportivo Cali, na final — Foto: Arquivo Pessoal

Do estádio para o Incor

Ao notarem a gravidade do mal súbito de Vagner, o sobrinho e os dois amigos conseguiram abrir um clarão na arquibancada gritando por ajuda. E, então, foi passada uma maca utilizada no próprio jogo até o lado direito da curva da “ferradura” do antigo Palestra Italia – setor hoje batizado de Gol Norte no Allianz Parque.

Na parte baixa do estádio, no fosso que distanciava a arquibancada do campo, foi feito o primeiro socorro. Com o taxista já desacordado, ao lado de uma sala onde os jogadores não relacionados caminhavam agoniados de um lado ao outro, houve uma tentativa de reanimá-lo até a chegada da ambulância. Uma ambulância antiga, de acordo com o sobrinho, e muito diferente das UTIs móveis contratadas hoje em dia para os jogos de futebol.

Não levou muito tempo, depois da chegada ao Incor, para o médico responsável pelo atendimento informar tanto aos conhecidos presentes quanto ao pai de Luiz Fernando que seu irmão tinha morrido. Como eles, o irmão mais velho de Vagner também não veria o segundo tempo do jogo.

– Meu pai estava em casa, não sabia de nada. O médico deu a notícia ao meu pai por telefone, sem meu pai ter a menor noção de nada – conta o palmeirense, hoje com 39 anos e pai de Luiz Henrique, um palmeirense de cinco.

Com o placar ainda em 0 a 0, aos sete minutos da segunda etapa, a transmissão da TV Globo informou a morte do taxista.

Repórter confirma morte de torcedor do Palmeiras durante a final da Libertadores de 1999

Repórter confirma morte de torcedor do Palmeiras durante a final da Libertadores de 1999

Morrer do coração não era novidade na família. Em 2 de março de 1996 (véspera de uma vitória do Palmeiras sobre o Corinthians e dia do trágico acidente com o avião da banda Mamonas Assassinas), o tio mais novo de Luiz Fernando já tinha sido vítima fatal de um infarto, aos 34 anos. O histórico familiar vai além, com seu avô e seu bisavô.

– Por isso eu sempre faço checape – diz o torcedor, que em 1999 trabalhava como assistente tributário em um escritório de contabilidade e atualmente é gestor de operações em um banco.

– Meu tio tinha uma tosse e uma gripe que não passavam. Mas ele era taxista, com carro novo, estava cheio de contas pra pagar, sem plano de saúde, e eu me lembro de, dias antes da final, ele me dizer que “no dia 16, a gente tem um compromisso muito importante, depois desse dia eu vou ao cardiologista”. Não vou garantir, mas, na minha cabeça, ele tinha agendado pra quinta-feira (dia seguinte à final) o cardiologista.

Luto e alegria

É possível, num momento de tanta tristeza, logo após a morte de uma pessoa querida, comemorar uma conquista do seu time? Comemorar dentro do hospital, aliás. Sim, é. Principalmente se a pessoa que acabara de morrer quisesse que você comemorasse, se ela tivesse justamente feito de tudo para que você terminasse o dia comemorando.

Vagner Sposito tratava Luiz Fernando como o filho que ele nunca teve e fazia questão, até mais do que o irmão, de fomentar nele a paixão pelas cores verde e branca. Era do tipo que, do nada, surpreendia o sobrinho com recortes de jornal enviados pelo correio, a fim de lembrá-lo que o clube estava no topo dos rankings nacionais atualizados ano a ano pela imprensa esportiva.

Recorte da Folha de S. Paulo enviado ao sobrinho mostra Palmeiras em primeiro lugar no ranking de clubes brasileiros de 1998 — Foto: Arquivo Pessoal

Recorte da Folha de S. Paulo enviado ao sobrinho mostra Palmeiras em primeiro lugar no ranking de clubes brasileiros de 1998 — Foto: Arquivo Pessoal

Era do tipo que daria o jeito que fosse para garantir os ingressos de ambos para a final contra o Deportivo Cali. Nem que para isso, depois de a Polícia Militar desfazer a fila à base de cassetete e spray, ele tivesse que mostrar um “simples” enxerto na panturrilha para alegar ter direito à fila prioritária.

– Ele me deixou na fila da Padre Antônio Tomás às cinco e meia da manhã e saiu pra trabalhar. Só que, horas depois, a PM separou a fila quando um caminhão precisou entrar. Quando ele chegou lá de novo e me viu desesperado, ele falou: “A gente precisa ver esse jogo”. Ele entrou na fila de prioridades, num ato de desespero, e conseguiu os dois ingressos.

No dia do jogo, as coisas não saíram como eles sonhavam, mas, de certa forma, Luiz Fernando conseguiu comemorar o título junto com o tio. Um dos amigos de Vagner no hospital tinha um walkman e, depois de confirmada a morte, avisou os dois gols do Palmeiras (um de Oséas, outro de Evair), o gol colombiano e o apito final, que levava a decisão aos pênaltis.

Os pênaltis de Palmeiras 2 (4) x (3) 1 Deportivo Cali pela final da Taça Libertadores de 1999

Os pênaltis de Palmeiras 2 (4) x (3) 1 Deportivo Cali pela final da Taça Libertadores de 1999

– Eu perguntei como estavam os pênaltis, ele tirou o fone e falou “perdeu, acabou”. Num ato meio de revolta, empurrei ele, saí andando, todo mundo veio atrás de mim. “Como assim ‘perdeu’?” Eu caminhei até a lanchonete do hospital. Lá tinha uma televisão, e a gente viu os pênaltis. O Zinho perdeu o primeiro pênalti, né? – lembra.

O mesmo Zinho que no intervalo tinha prometido a vida acertou o travessão na primeira cobrança. Mas não tinha acabado, não.

– O amigo do meu tio desligou o walkman quando o Zinho perdeu o pênalti, por isso que ele falou “perdeu, acabou”. Só que aí, já na lanchonete, a gente vê a virada, o título. Num lugar extremamente inadequado, dentro do hospital, a gente faz uma comemoração, e eu grito o nome do meu tio.

Da TV da lanchonete, ele viu o título se confirmar num chute de Martín Zapata à direita do gol de “São” Marcos. Uma bola que, no sábado, em uma crônica lida na Rádio Jovem Pan e que emocionou a família, o jornalista Flávio Prado disse ter sido assoprada de algum lugar por Vagner.

21 anos depois, outra final

Pela primeira vez no século, o Palmeiras está novamente na decisão do principal torneio da América. Às 17 horas (de Brasília) deste sábado, o time enfrenta o Santos, no Maracanã – diferentemente do regulamento de 1999, a competição agora é decidida em jogo único.

Sem público, em função da pandemia de Covid-19, o estádio só terá alguns convidados dos clubes finalistas, de patrocinadores e da Conmebol.

Sem Vagner, a ideia de Luiz Fernando é assistir à decisão na companhia do novo parceiro de arquibancada, o filho, em uma chácara da família, em Águas de São Pedro, interior paulista, aonde o tio também gostava muito de ir.

Luiz Henrique, de cinco anos, é o novo companheiro do pai nos jogos do Palmeiras no Allianz Parque — Foto: Arquivo Pessoal

Luiz Henrique, de cinco anos, é o novo companheiro do pai nos jogos do Palmeiras no Allianz Parque — Foto: Arquivo Pessoal

– Tenho certeza de que meu tio vai estar assistindo. E eu conto com ele (risos), conto com esse empurrão novamente. Conto com uma bola pra fora, ou com a bola pra dentro, se for a favor. Não tenho a menor dúvida de que ele estará vendo – diz o palmeirense, que volta e meia nota o novo parceiro de arquibancada tão parecido quanto o antigo.

– Às vezes a gente pergunta se não é ele (Vagner) que está aí, se a gente não recebeu ele de volta. Porque têm algumas coisas que a gente se pergunta de onde esse moleque tirou… É engraçado, é da vida. É da vida.

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Fonte: GE – Globo Esporte.

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