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Os ‘brasilanos’: a geração de brasileiros filhos de venezuelanos que nasce em Roraima

Às 4h de 18 de outubro de 2018 mais uma venezuelana deu à luz em Boa Vista, a capital de 375 mil habitantes que já tem cerca de 10% da população vinda do país

Os ‘brasilanos’: a geração de brasileiros filhos de venezuelanos que nasce em Roraima
Os ‘brasilanos’: a geração de brasileiros filhos de venezuelanos que nasce em Roraima

Redação Publicado em 03/11/2018, às 00h00 - Atualizado às 08h55


Em menos de três anos, partos de venezuelanas quase quadruplicaram na rede pública do estado e a estatística não para de crescer. Para especialista, geração pode ‘salvar’ o país, que vê a taxa de natalidade despencar.

Às 4h de 18 de outubro de 2018 mais uma venezuelana deu à luz em Boa Vista, a capital de 375 mil habitantes que já tem cerca de 10% da população vinda do país vizinho. Foi a segunda em 15 minutos.

O bebê, um menino de pele rosada chamado Samtyago Diaz, veio ao mundo de parto normal. Se juntou a uma nova (e crescente) geração, a dos “brasilanos”, os brasileiros filhos do êxodo venezuelano que nascem todos os dias em Roraima – estado que, na contramão do país, vê a taxa de natalidade aumentar.

De janeiro a setembro, dado mais recente disponível, foram 1.024 partos de venezuelanas na única maternidade pública do estado, 80% a mais que os 566 partos de venezuelanas em todo o ano de 2017 e 255% mais que os 288 de 2016. Os números estão ainda distantes dos 9.343 partos totais registrados na unidade em 2017, mas, relativamente, a estatística não para de crescer.

“Meu filho vai viver e estudar no Brasil. Eu espero que aqui ele seja um profissional, algo que não poderia ser na Venezuela”, diz a mãe de Samtyago, Dagly Monrroy, de 24 anos.

O Brasil adota um sistema misto de nacionalidade. São brasileiros todos aqueles que nascem no território do país, que é o caso dos filhos dos venezuelanos, bem como aqueles nascidos fora, mas que tenham um ou ambos os pais nativos. Na Venezuela a regra é similar.

Williany Fariña é mais uma brasileira que acaba de nascer. Veio ao mundo às 3h45 daquela mesma madrugada de 18 de outubro. Com malária, a mãe viajou por sete horas só para dar à luz a menina.

“Me senti mais segura para tê-la aqui no Brasil. Na Venezuela, não há condições. Não há médicos, não há remédios”, conta Elyanny Fariña, 26, afirmando que o pai, um brasileiro, também quis que a menina nascesse do outro lado da fronteira. “Para ser brasileira como ele”.

Dagly Monrroy, 24, com o filho, Samtyago Diaz no colo  — Foto: Emily Costa/G1 RR

Dagly Monrroy, 24, com o filho, Samtyago Diaz no colo — Foto: Emily Costa/G1 RR

Doze horas depois do parto, mãe e filha ficaram numa poltrona encostada na parede de um corredor – um destino improvisado de parturientes e bebês à espera de leitos cada dia mais disputados na maternidade.

“Há dois meses nossa UTI superlotou. Eram 50 e poucos bebês, a maioria filhos de pais venezuelanos”, diz Henry Lopez, pediatra e diretor técnico do Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazareth.

“Para um sistema de saúde que já estava em frangalhos, o crescente número de partos de venezuelanas é um impacto notável”.

Segundo ele, apesar de que algumas mães já chegam com problemas de saúde, óbitos não são comuns e os bebês geralmente nascem saudáveis e de parto normal.

“O mecanismo da gravidez é perfeito e protege os bebês mesmo que as mães tenham condições de saúde não tão boas.”

Partos de venezuelanas na rede pública de Roraima
2016 a 2018
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Fonte: Sesau-RR

Eliannys Asuaje, de 24 anos, acaba de dar à luz a Eithan. O menino nasceu prematuro aos 8 meses, mas está saudável e ela já faz planos para o futuro dele.

“Ele falará português e espanhol”, diz a mãe que não tem vontade de regressar à Venezuela. “Eu e meu esposo queremos dar a ele aqui um futuro estável”.

Fará parte da geração que pode “salvar o Brasil”, segundo a socióloga e professora de estudos sobre fronteiras da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Francilene Rodrigues.

“A população brasileira passará a ser decrescente e esses bebês podem nos ajudar a manter o país, já que a população mais idosa precisa de maior assistência e tende a colocar em risco o processo produtivo do Brasil”, explica.

A pesquisadora, no entanto, faz um alerta: o Brasil precisa parar de tratar a migração venezuelana como “uma dor de dente passageira”, e encará-la como um processo permanente que necessita de políticas de inclusão para pais e filhos.

Até agora, as frentes adotadas pelo governo brasileiro no acolhimento dos venezuelanos têm sido as de abrigamento e interiorização.

“A inserção precisa acontecer principalmente no mercado de trabalho para que não só os pais como os filhos também possam contribuir, inclusive por meio de impostos, garantindo asssim que eles deem um retorno para o país”.

Refugiados na terra natal

Com um volume crescente de imigrantes chegando, e abrigos quase sempre lotados, encontrar venezuelanos em situação de rua se tornou comum em Boa Vista. Grávidas e recém-nascidos não escapam dessa realidade.

Aos sete meses de gestação, Sairelys Hernandez, de 26 anos, vive de maneira improvisada nas ruas. Sofre com febre e dores no ventre, sintomas de uma infecção urinária.

“Às vezes não consigo banheiro e tenho que fazer xixi na rua, o que me deixa doente”, explica.

Ela não fez nenhum exame e muito menos pré-natal. Não sabe se dará à luz a menino ou menina e só ouviu os batimentos cardíacos do bebê uma única vez, quando foi ao médico meses atrás.

“Hoje eu só sei que meu bebê está vivo e bem porque o sinto mexer. É a minha única prova”.

Crianças e adultos refugiadas dormem ao relento em frente à rodoviária de Boa Vista — Foto: Emily Costa/G1 RR

Crianças e adultos refugiadas dormem ao relento em frente à rodoviária de Boa Vista — Foto: Emily Costa/G1 RR

Rosannys Machado, de 16 anos, saiu da maternidade direto para a rua, o que fez sua bebê adoecer rapidamente.

“Ela teve problemas respiratórios. Acho que viver assim a fez ficar doente, mas não temos mais para onde ir”, conta Rosannys com a menina, que tem menos de dois meses no colo.

Mãe, filha e o pai vivem em um acampamento improvisado nos fundos da rodoviária de Boa Vista, a terceira instalação de refugiados que surgiu nas redondezas em menos de dois anos.

Uma família de ‘brasilanos’

Já é noite quando uma menina de pele morena e olhos redondos dorme um sono profundo dentro de uma barraca de camping.

O barulho dos carros que passam velozes na pista ao lado não a acorda, tampouco a cumbia (música de origem caribenha popular na Venezuela) que toca ao fundo em um rádio de pilha.

“Cheguei grávida ao Brasil, há um ano e três meses e ela nasceu aqui”, diz Rorelysmar Moreno, de 20 anos.

“Vim porque passava fome e ao ir ao médico lá na Venezuela descobri que ela estava desnutrida na gestação”, diz a jovem que também é mãe de um menino, este com 4 anos e venezuelano. “Aqui voltei a me alimentar melhor e ela nasceu com peso normal”.

Eduard Marcano, a mulher Rorelysmar e os dois filhos pequenos; a menina é brasileira — Foto: Emily Costa/G1 RR

Eduard Marcano, a mulher Rorelysmar e os dois filhos pequenos; a menina é brasileira — Foto: Emily Costa/G1 RR

Ela, os filhos, e o marido vivem na rua há menos de um mês. Ele trabalhava em uma fazenda no interior do estado, mas decidiu sair. Ganhava menos de um salário mínimo, o que não era suficiente para mantê-los.

“Estou em busca de outro trabalho, mas ainda não consegui. As coisas estão cada dia mais difíceis para os venezuelanos. Já somos muitos aqui”, diz Eduard Marcano, 32.

Mesmo na rua, a família não tem planos de ir embora, porque diz que voltar para a Venezuela seria bem pior. Além disso, há cinco meses descobriram mais um motivo para querer ficar no Brasil: Rorelysmar está grávida outra vez.

É mais um “brasilano” prestes a nascer.

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