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Os 54 anos perdidos de dona Madalena

Por Deives Rezende Filho*

Os 54 anos perdidos de dona Madalena
Os 54 anos perdidos de dona Madalena

Redação Publicado em 24/05/2022, às 00h00 - Atualizado às 08h02


Por Deives Rezende Filho*

Os 54 anos perdidos de dona Madalena

Poderia ser minha mãe. Poderia ser minha tia. Não, poderia ser minha irmã. Afinal, também tenho 60 anos.

Na reportagem a que assisti, descobri a dona Madalena. Uma mulher negra, baiana, que teve a sua vida sequestrada pelo racismo. Não só pelo racismo, mas por uma família branca, com crimes coloniais na conta. Ela, depois de 54 anos, sobreviveu a um “trabalho” análogo à escravidão. Sem nenhum direito trabalhista, sem sequer pagamento de salário pela sua dedicação àquelas pessoas, sem respeito, sem direito a ter a sua própria vida. Sem direito à liberdade.

Tenho quatro filhos e dois netos. Ela não. Tenho uma vida relativamente confortável, ela não teve.  E mesmo que em realidades tão distintas, entre privilégios e violações de direitos humanos, a cor que nos une também compartilha a dor do racismo. O que foi a vida de Dona Madalena, que se deparou com o resquício de uma Casa Grande, aos seus oito anos de idade? Como ela parou lá? Quem a levou? O que aconteceu com os seus pais?

São tantas perguntas e eu apenas não consigo encarar tamanha crueldade. Mas a Dona Madalena teve que encarar, diariamente, violências verbais, físicas, psicológicas e tantas outras. Foi submetida a situações desumanas, encurralada a acreditar que pertencia àquela família branca, para servir a eles, odiando a sua própria pele. O peso do racismo sobre a sua cor negra a fez sentir todos os dias a tortura da discriminação.

Será que a Dona Madalena já viu o mar? Ou ao menos viu seus pais? A história que lhe foi negada, também foi negada a todos os outros negros há mais de quinhentos anos, numa série de subordinação aos brancos, aos senhores de engenho, que por gerações deixaram as marcas das correntes em nossos ancestrais. E, ainda hoje, sentimos estas marcas latentes na pele.

Dona Madalena chora ao ver que a jornalista branca se aproxima para tocá-la, sentindo-se inferior a ela. Não era a jornalista que ela temia, mas sim a sua cor, a branquitude construída a partir de uma herança escravocrata que a fez estar nesta situação. É preciso relembrar que há quase exatos 134 anos, a Princesa Isabel, numa grande farsa nacional, assinou a suposta libertação dos escravos no dia 13 de maio; data que não é comemorada pela comunidade negra, pois reflete o racismo estrutural e sistêmico que perpetua até hoje, mascarado em discursos governistas, meritocráticos e anti-cotas.

Talvez, a Dona Madalena tenha sido a última mulher negra escravizada no Brasil. Pelo menos, é o que espero acreditar. Mas sabemos que ainda existem outras mulheres negras espalhadas no país, sonhando com a liberdade. No último ano, ao menos 13 foram encontradas em situações semelhantes.

Mas qual a reparação? Desde 1888, os negros deste país não tiveram sequer a chance de almejar as mesmas oportunidades, mesma faixa salarial e, principalmente, o mesmo direito pela vida. Continuamos presos e encurralados em favelas, em quartos de empregada, atrás de máquinas ou atrás das grades. E como podemos reparar os 54 anos perdidos de Dona Madalena?

Aqueles que lhe negaram o seu direito de liberdade precisam ser imediatamente responsabilizados. Mesmo que muitas vezes a lei pareça funcionar contra nós e nunca para nós, a impunidade não será histórica e os danos que foram infringidos devem ser ressarcidos. É o mínimo que pode ser feito para reparar algo irreparável, pois para avançarmos como comunidade negra, precisamos conquistar melhores condições de vida.

Uma coisa podemos dizer: Dona Madalena foi a última de sua família a ter memórias de uma senzala. Hoje, tem a chance de iniciar seus primeiros passos em busca de seus desejos, aspirações e sonhos. Não sozinha, mas ao lado de muitos como ela, de pessoas que ela não precisará temer. De pessoas que poderiam ser seus pais, filhos, ou como no meu caso, seu irmão, apoiando-a em sua nova vida.

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* Deives Rezende Filho é fundador e CEO da Condurú Consultoria e especialista em ética, diversidade e inclusão.
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