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Opinião: Giannis Antetokounmpo não é um monstro

Giannis Sina Ugo Antetokounmpo não é uma aberração da natureza. Muito menos um monstro, ou um animal. Impreciso também chamá-lo de trator, ou qualquer

GIANNIS
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Redação Publicado em 21/07/2021, às 00h00 - Atualizado às 10h23


Nunca desmereça a profundidade no olhar de quem já passou por mais desafios do que você.

Giannis Sina Ugo Antetokounmpo não é uma aberração da natureza. Muito menos um monstro, ou um animal. Impreciso também chamá-lo de trator, ou qualquer máquina, até porque trata-se de uma figura especial com a mais humana das características: inteligência.

Temos dificuldades ou até certo bloqueio em destacar as propriedades intelectuais de Giannis.

Nos Estados Unidos, a desconfiança se explica pela jornada do herói em questão. Normalmente público e imprensa americana vão se enamorando aos poucos com craques do basquete desde os tempos de escola. O flerte começa cedo. LeBron James, por exemplo, foi capa da revista Sports Illustrated ainda adolescente, no ensino médio. Steph Curry, criança, participava de programas de auditório para todo o país mostrando sua habilidade precoce nos arremessos. Enquanto isso, Giannis e sua família corriam atrás da grana da janta de cada dia do outro lado do oceano.

Giannis, diferente de outras estrelas da NBA, não é amigo dos principais rappers nas paradas de sucesso, não escolheu viver em uma cidade badalada como Nova York ou Los Angeles. Vemos agora um craque campeão comandando uma festa à qual nem foi convidado.

Antetokounmpo, aliás, não era bem-vindo nem em sua terra natal, onde morava com a família apoiado por documentos irregulares. Os pais de Giannis, refugiados nigerianos em Atenas, na Grécia, formaram linda família com os meninos Francis, Thanasis, Giannis, Kostas e Alex. Gurizada que vendia óculos escuros falsificados nas calçadas da capital grega enquanto os pais buscavam bicos que os garantissem algum leite à mesa. A família Antetokounmpo só teve a documentação regularizada quando o menino Giannis começou a se destacar no basquete e a seleção grega pedia sua presença.

A família Antetokounmpo na Grécia, da esquerda para a direita: em pé, Thanasis e Giannis; sentados, Alex, o pai Charles, a mãe Veronica e Kostas — Foto: Arquivo pessoal do atleta

A família Antetokounmpo na Grécia, da esquerda para a direita: em pé, Thanasis e Giannis; sentados, Alex, o pai Charles, a mãe Veronica e Kostas — Foto: Arquivo pessoal do atleta

Nigerianos e também gregos sem maiores garantias, Giannis e seus irmãos precisaram amadurecer mais cedo. Hoje o rapaz de 26 anos parece um veterano ao liderar seu Milwaukee Bucks em quadra. No vestiário, é o camisa 34 quem dá a primeira e a última palavra a cada papo. Em quadra, é “dominante” como gostam de repetir os americanos. E aí temos uma armadilha de linguagem. Porque Antetokounmpo tem força, músculos, altura e atleticismo que chamam atenção, mas consegue usar tais atributos de maneira magistral e – por que não (que rufem os tambores) – genial.

Se o colega de NBA e de geração Nikola Jokic, pivô do Denver Nuggets, é chamado de “gênio”, por que Giannis também não é? Jokic é branco; Giannis, um imigrante de família africana, com cidadania grega e muito sotaque ao falar inglês. Vemos aí inegável elemento racial na dificuldade em que narradores, comentaristas, repórteres, jornalistas e público em geral têm para chamar Giannis de gênio.

Giannis Antetokounmpo e o toco decisivo em Deandre Ayton no jogo 4: leitura defensiva já lhe rendeu prêmio de Melhor Defensor da NBA — Foto: Jonathan Daniel/Getty Images

Giannis Antetokounmpo e o toco decisivo em Deandre Ayton no jogo 4: leitura defensiva já lhe rendeu prêmio de Melhor Defensor da NBA — Foto: Jonathan Daniel/Getty Images

Em Racismo Estrutural, livro obrigatório para quem busca explicações para as relações de opressão racial no Brasil e no mundo, o professor Silvio Almeida apresenta e articula a imagem do negro nas estruturas sociais. Silvio viu de perto como o atleta negro é tratado pela sociedade. Seu pai, Barbosinha, foi goleiro do Corinthians.

– Existe uma dinâmica de ideia imposta pelo sistema econômico que separa as pessoas entre as que realizam trabalhos manuais e as que produzem trabalhos intelectuais. E a divisão racial funciona como uma separação social do trabalho. (…) Quando surgem atletas brancos de destaque, estes possuem mais proeminência, são vistos naturalmente como líderes. São visto como pessoas com maior capacidade de organização. Já os jogadores negros são vistos como mais habilidosos e fortes, mas a organização, a ideia de inteligência, e a liderança é associada a jogadores brancos – aponta Silvio Almeida em entrevista ao fundamental podcast Ubuntu Esporte Clube.

Pois Giannis é um líder de inteligência rara na NBA. Um atleta que desenvolveu o passe e a condução de bola como atributos administrados por uma criteriosa tomada de decisão. Tais predicados intelectuais do grego estão presentes nos números. Nesta série final contra o Suns, além da média de 35,2 pontos e 13,2 rebotes, vemos também impressionantes 5 assistências por partida e apenas 2,3 em desperdícios de bola. O aproveitamento superior a 61% nos arremessos de quadra revela também a sensibilidade pra escolher suas tentativas, mesmo quando arrisca chutes de onde não costuma acertar.

Há ingenuidade de nós jornalistas em apontar a Giannis aquilo que é melhor… para Giannis. Como se o próprio não soubesse. Como se fosse um eterno menino inconsciente de suas potencialidades, sempre à procura de tutela. Que tal tentarmos aprender um pouco com o grego? Menos condescendência de nossa parte, mais humildade.

Da esq. para a dir.: os irmãos Giannis, Kostas, Francis e Thanasis Antetokounmpo — Foto: Arquivo pessoal do atleta

Da esq. para a dir.: os irmãos Giannis, Kostas, Francis e Thanasis Antetokounmpo — Foto: Arquivo pessoal do atleta

Antetokounmpo tem a plena noção de que não é um especialista na linha dos três pontos, mas tenta utilizar tais tentativas como um recurso psicológico em momentos cruciais da partida. Se acerta, explode a torcida; se erra, a chance de um rebote ofensivo não é baixa, devido a elevação que seu arremesso possui.

Nos lances livres, percebemos um outro desafio emocional para o jogador. Giannis virou meme nesses playoffs por demorar demais para concluir seus arremessos livres, algumas vezes até sendo penalizado com o estouro dos dez segundos para a execução do movimento. Já é tradicional a contagem em coro da torcida adversária quando Giannis vai à linha: “um, dois, três…” E em muitas vezes os arremessos são embaraçosamente ruins, não chegam nem ao aro. Mas o embaraço fica por conta dos outros, não de Giannis. A sofisticação emocional atingida pelo craque do Bucks o permite que logo após um erro supostamente constrangedor, execute um lance espetacular.

Melhores Momentos: Milwaukee Bucks 105 X 98 Phoenix Suns pelo jogo 6 da final da NBA

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O grego chegou aos Estados Unidos em 2013, e até agora coleciona nobres prêmios. Foi eleito por duas vezes o melhor jogador da liga. Escolhido também como o melhor defensor da competição no ano passado e agora campeão da NBA. Até pouco antes da conquista, a imprensa americana não dava o devido valor ao jogador. Criticado a cada entrevista, a cada eliminação ao longo da jornada que culminou com o título, Giannis respondia as ásperas perguntas com doces sorrisos e inteligentes respostas. O grego recebia críticas e deboches, mas devolvia afeto.

Em sua cidade, Milwaukee, recebeu o carinho e a valorização justa. No fim do ano passado, superando grandes estrelas do mercado, Giannis assinou o mais caro contrato da história da liga: 228 milhões de dólares para cinco anos de serviços. Hoje, vemos que o investimento já teve seu retorno.

– Quando vejo o passado, minhas conquistas pessoais, o que já consegui, lá está o meu ego. Quando olho para o futuro, aí estamos falando de orgulho, mirando o que ainda quero realizar. Por isso procuro sempre focar no presente, no exato momento em que vivo sempre. Aqui, no presente, está a humildade, sem expectativas, apenas aproveitando ao máximo cada instante – filosofou Antetokunmpo após o jogo 4 da final contra o Suns.

As mãos grandes que já manusearam óculos de plástico nas ruas de Atenas, hoje seguram um troféu de campeão da maior liga de basquete do mundo. O futuro a Giannis pertence, com a humildade e a sabedoria de quem mora sempre no tempo presente, sorrindo, e sem fantasia de monstro.

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Fontes: Ge – Globo Esporte.

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