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Caio Leonardo

Não havia nada que escapasse ao conhecimento do vigário: o nascimento, o batismo, a primeira comunhão, a crisma, o casamento, a extrema-unção, vida e morte do

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Caio Leonardo

Redação Publicado em 20/08/2018, às 00h00 - Atualizado em 08/09/2018, às 14h40


O GRANDE VIGÁRIO VIRTUAL

Não havia nada que escapasse ao conhecimento do vigário: o nascimento, o batismo, a primeira comunhão, a crisma, o casamento, a extrema-unção, vida e morte do católico no Brasil colônia. Isso é só uma parte da história. Igreja e Governo eram formalmente unidos. Assim, o vigário também registrava a compra-e-venda de terras, mas também de canoas, de tudo. E também tinha o confessionário. O vigário sabia o que era público e o que era secreto dos homens, das mulheres, das crianças. Não se sabia quem mentia mais, porém a confissão era obrigatória. Missionários chegavam ao Brasil para converter à fé cristã, do índio a caboclo, do náufrago ao negro, desde os primeiros jesuítas, que aqui chegaram em 1549. O trabalho era árduo, mas tinha suas recompensas: Não existe pecado do lado de baixo do Equador, registrou o holandês Barlaeus em 1641. O frei Leonardo Nunes, que, por se mover rápido pelos sertões, os índios de São Vicente o chamavam de “Abarebebê” (“frei voador”), criou a primeira escola da capitania, converteu nativos, e, dizem, por lá fez muitos filhos. Os vigários, portanto, sabiam de tudo, e alguns, de tudo em muitos sentidos.

Não era evidentemente apenas o vigário que sabia de tudo. O que importava, o bispo conhecia; o que importava demais, chegava ao Vaticano, por vezes sem que a pessoa envolvida soubesse até ser condenada à fogueira. A Igreja era interessada direta no que se passava no comércio, na geração e na circulação de riquezas, porque disso extraía o seu dízimo; e a Coroa, seus impostos.

O risco de alguém deter tanto conhecimento estava e está no poder que isso representa. Esse poder, hoje, não está nas mãos nem da Igreja, nem do Estado, mas sim na ponta dos dados e dos dedos (de onde vem a palavra “digital”) das grandes empresas que operam na internet. O vigário do século 21 é virtual.

Uma conversa sua sobre aluguel de casa em Brasília pelo Whatsapp faz surgirem anúncios de casas no Facebook. Uma conversa sua sobre um livro de culinária pelo Gmail, anúncios no Google. Recentemente, surgiu o debate sobre Cadastro Positivo: os bancos vão saber quem paga direitinho, para decidirem se oferecem crédito e a que custo. O Facebook foi acusado internacionalmente de se omitir – e receber por isso – na divulgação de posts falsos e manipuladores da opinião pública por internautas russos (ligados a Putin?) interessados em influenciar a recente eleição presidencial de Trump.

A novíssima “Lei de Proteção de Dados” busca controlar o modo como circulam e são usados elementos como seu nome, seu RG, seu CPF, seu crédito, seus interesses comerciais, suas preferências culinárias, turísticas e sexuais, se você é casado, se você trai seu marido, como anda sua saúde e o que você anda confessando por aí.

Talvez não chegue a ser uma Proclamação da República, que ponha sob o controle do Estado aquilo que vem sendo anotado pelo grande vigário virtual. Mas é sinal de novos tempos.

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