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O futebol conseguiu criar uma bolha: a do descolamento da realidade

É curiosa a forma como o futebol se apega ao que se convencionou chamar de "bolha", expressão adotada para tentar vender uma sensação de ambiente seguro que o

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Redação Publicado em 14/04/2021, às 00h00 - Atualizado às 12h49


Ao planejar que atletas furem a fila num continente que, hoje, desperta preocupação mundial em relação à pandemia, Conmebol reforça a posição de insensibilidade do futebol diante da crise de saúde global

É curiosa a forma como o futebol se apega ao que se convencionou chamar de “bolha”, expressão adotada para tentar vender uma sensação de ambiente seguro que o jogo, a rigor, jamais foi. De tanto recorrer ao termo, terminou por desvirtuá-lo: está claro que não se criou exatamente uma bolha de segurança, mas uma bolha onde seus dirigentes decidiram viver, numa espécie de exercício de descolamento da realidade.

É o que se conclui diante da decisão da Conmebol que, após fazer gestões políticas intermediadas pelo governo uruguaio, assegurou o acesso privilegiado a 50 mil doses de vacina e decidiu usá-las para vacinar atletas de elite, quase todos com acesso a sistemas de saúde infinitamente mais equipados do que aqueles que servem ao cidadão sul-americano médio. É a prova definitiva de que os dirigentes empurraram para a zona de rebaixamento de sua lista de preocupações qualquer senso de empatia, de envolvimento com questões sociais graves num continente que hoje desperta preocupação mundial.

A Conmebol, vale lembrar, está sediada no Paraguai, país com um dos piores desempenhos mundiais na gestão da pandemia e números pífios em matéria de vacinação. Salvo Chile e Uruguai, os números são preocupantes nos demais países filiados. A entidade, tampouco custa lembrar, é a máxima representante do futebol num continente que enxerga o jogo como parte indissociável de sua cultura, de sua identidade. E este continente, desde sempre marcado pela desigualdade como traço mais evidente, é hoje o epicentro da pandemia no mundo, criando uma massa de desfavorecidos especialmente vulneráveis à doença.

Não é possível negligenciar o papel social do futebol a ponto de promover, na América do Sul deste 2021, as condições para que atletas, quase todos vivendo uma vida de exceção num continente pobre, furem a fila da vacina e sejam tratados como seres especiais pelo simples fato de terem o talento para jogar futebol. E, assim, contratos comerciais de alguns milhões de dólares são salvos.

Outra vez, o futebol exibe seu descompasso com o mundo real, seu olhar comprometido apenas como o próprio umbigo. Uma vez que se tornou poderoso a ponto de ter acesso privilegiado a doses de vacina disputadas pelo mundo todo, uma vez que tem tamanho poder de comunicação com o público, não era pedir demais que sinalizasse à sociedade sua disposição a ser solidário, que usasse seu poder em benefício de quem realmente precisa. Estas vacinas poderiam estar em melhores mãos – ou em melhores braços.

O Brasil já viu dirigentes usarem respiradores como ferramenta de barganha para convencer uma cidade a aceitar seus jogos; em seguida, viu um clube acenar com a compra particular de vacina para transformá-la em benefício de seu programa de sócios, numa clara tentativa de tirar partido econômico. Agora, a Conmebol comprova a vocação do jogo para não renunciar à mínima chance de protagonizar uma vergonha. Ao menos, precisamos reconhecer: a cartolagem do futebol teve sucesso em construir uma bolha. A ponto de viver dentro dela.

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Fonte: GE – Globo Esporte.

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