Diário de São Paulo
Siga-nos

Nobel premia três mulheres em 2018, mas elas somam apenas 5% dos vencedores desde 1901

Após os anúncios das mais recentes premiações do Nobel, feitos neste mês em cinco categorias, a presença feminina no prêmio continua pequena: 5,7%. Das 906

Nobel premia três mulheres em 2018, mas elas somam apenas 5% dos vencedores desde 1901
Nobel premia três mulheres em 2018, mas elas somam apenas 5% dos vencedores desde 1901

Redação Publicado em 18/10/2018, às 00h00 - Atualizado às 17h41


Menor percentual de participação feminina é na física, que tem só 1% de ganhadoras mulheres em toda a trajetória do prêmio.

Após os anúncios das mais recentes premiações do Nobel, feitos neste mês em cinco categorias, a presença feminina no prêmio continua pequena: 5,7%. Das 906 pessoas laureadas desde 1901, apenas 52 são mulheres. O G1 conversou com especialistas para entender por que as mulheres aparecem tão pouco, os avanços que foram feitos e se há perspectivas de melhora.

A física tem o pior índice de vencedoras: 1%. Apenas três mulheres ganharam o prêmio desde 1901. Antes de a canadense Donna Strickland vencer neste ano, a última mulher a ser premiada foi em 1963 — há nada menos que 55 anos. Antes disso, o tempo entre uma mulher e outra ganhar foi ainda maior: seis décadas. Marie Curie venceu em 1903.

Para a professora Marcia Rodrigues, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as dificuldades para aumentar esse número têm origem ainda na infância.

“Quando você pensa em física, pensa em experimentação. As meninas, na infância, não têm brinquedos de experimentação. Os meninos têm.” – Marcia Rodrigues, da UFRGS

“No caso da física teórica, a gente associa àquela superinteligência. Um estudo feito em Princeton mostrou que as meninas, aos sete anos, já acham que elas não são inteligentes”, afirma. “Nós as elogiamos por fazerem coisas caprichosas, bonitinhas. Utiliza-se a beleza como instrumento de elogio, mas nunca a inteligência”, afirma.

Outro fator citado pela cientista como contribuinte para o pequeno número de mulheres em premiações como o Nobel, especialmente na física, é o chamado “efeito tesoura”: o número de mulheres em carreiras de exatas vai diminuindo à medida que o nível de pesquisa se torna mais complexo.

Vencedoras do Nobel em física: Marie Curie (à esq.), Maria Goeppert Mayer (topo) e Donna Strickland — Foto: Donna Strickland: Universidade de Waterloo; Marie Curie: domínio público; Maria Goeppert Mayer: Fundação Nobel | Arte: G1

Vencedoras do Nobel em física: Marie Curie (à esq.), Maria Goeppert Mayer (topo) e Donna Strickland — Foto: Donna Strickland: Universidade de Waterloo; Marie Curie: domínio público; Maria Goeppert Mayer: Fundação Nobel | Arte: G1

Das três mulheres que ganharam o Nobel em física, nenhuma o fez sozinha: os prêmios foram divididos, em todas as ocasiões, com outros dois cientistas. Rodrigues acredita que, hoje em dia, eles dificilmente irão para somente uma pessoa.

“A ciência é feita muito mais coletivamente hoje. No caso da Marie Curie, o casal [Marie e Pierre Curie] trabalhava junto, então era impossível não dividir. Para a Maria Goeppert Mayer [vencedora em 1963], ela ganhar foi maravilhoso, porque ela não tinha nem emprego. Trabalhava nos EUA, numa universidade, mas sem ser formalmente professora; só virou depois de ganhar o Nobel.”

“Além disso, acho fantástico a Donna (Strickland) ter ganho, porque foi o trabalho que ela fez durante o doutorado dela, e muitas vezes o estudante fica fora do prêmio”, comenta. “O Nobel está conseguindo enxergar o papel do jovem estudante como protagonista. No caso da Frances Arnold, em Química, ela compartilha, mas fica com metade. Ela ganhou sozinha no tema dela,o outro tema é que foi dividido. É super protagonista”, diz.

A situação de Strickland é bem diferente da ocorrida, por exemplo, com a cientista Rosalind Franklin, cujas contribuições para a descoberta da estrutura do DNA não foram reconhecidas no Nobel de 1962. O comitê premiou, em vez disso, três homens: Frances Crick, James Watson e Maurice Wilkins.

Química

Mesmo com a vitória de Frances H. Arnold neste ano, a situação na química não é muito diferente: apenas 2% dos vencedores são mulheres. Foram cinco vencedoras desde 1911, quando Marie Curie levou o prêmio — a única cientista, mulher ou homem, a vencer em duas categorias.

Para a vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professora do Instituto de Química da Unesp de Araraquara, Vanderlan Bolzani, a vitória de Frances Arnold e Donna Strickland são motivos para comemorar, mas ainda há muito potencial a ser desenvolvido.

“Toda vez que você premia, está contribuindo para uma igualdade. Avançou, mas as mulheres ainda são mal representadas. A maioria das mulheres cientistas brasileiras são todas nivel 2 no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, órgão de incentivo à pesquisa no Brasil). O nível 1A, que é o top, tem muito poucas”, lembra.

Vencedoras do Nobel em Química. No topo: Marie Curie (domínio público), Irène Joliot-Curie (Fundação Nobel), Dorothy Crowfoot Hodgkin (Vladimir Vyatkin/AFP). Abaixo, Ada Yonath (Evgeny Biyatov/AFP) e Frances Arnold (Heikki Saukkomaa/AFP). — Foto: Arte: G1

Vencedoras do Nobel em Química. No topo: Marie Curie (domínio público), Irène Joliot-Curie (Fundação Nobel), Dorothy Crowfoot Hodgkin (Vladimir Vyatkin/AFP). Abaixo, Ada Yonath (Evgeny Biyatov/AFP) e Frances Arnold (Heikki Saukkomaa/AFP). — Foto: Arte: G1

De acordo com um estudo publicado no ano passado, entre 2013 e 2014, das 1.213 bolsas de pesquisa concedidas pelo Conselho no nível 1A, apenas 299, ou 24%, foram concedidas a mulheres. Quando se considera apenas as áreas de ciências exatas, naturais ou da terra, o percentual de bolsas concedidas no nível mais alto de pesquisa cai para 18%.

Bolzani destaca que a maternidade também pode ser um fator limitante. “Isso é uma coisa complicada. A maioria das mulheres que se tornam mães e cientistas e conseguem conciliar têm um apoio familiar — mas sempre foi assim, a vida inteira. A Marie Curie foi discrimanda e teve um grande apoio da familia”, lembra.

Apesar das dificuldades, a vice-presidente da SBPC é otimista. “Meu neto hoje, com quatro anos, vai ter uma cabeça diferente. As meninas e os meninos brincam das mesmas brincadeiras, que estimulam o cérebro”, comenta a cientista.

Medicina

Primeiras seis vencedoras do Nobel de Medicina: Gerty Theresa Cori (Fundação Nobel); Rosalyn Yalow (Fundação Nobel); Barbara McClintock; Rita Levi-Montalcini; Gertrude B. Elion; Christiane Nüsslein-Volhard  — Foto: Fotos: Fundação Nobel, com exceção de Chrsitiane Nüsslein-Vollhard (Jörg Carstensen/AFP) | Arte: G1

Primeiras seis vencedoras do Nobel de Medicina: Gerty Theresa Cori (Fundação Nobel); Rosalyn Yalow (Fundação Nobel); Barbara McClintock; Rita Levi-Montalcini; Gertrude B. Elion; Christiane Nüsslein-Volhard — Foto: Fotos: Fundação Nobel, com exceção de Chrsitiane Nüsslein-Vollhard (Jörg Carstensen/AFP) | Arte: G1

Das três áreas das ciências naturais, a medicina é que a tem a maior porcentagem de mulheres vencedoras. Mesmo assim, esse número só chega a 5% — 12 dos 216 vencedores. Para Marcia Rodrigues, da UFRGS, o número ligeiramente maior também tem suas origens na infância.

“Os brinquedos das meninas estão associados ao cuidado. Se a menina vai para a ciência, vai para o cuidado”, explica. “Temos que fazer um trabalho lá atrás, de que as crianças podem fazer o que elas quiserem, senão teremos as mulheres todas em uma profissão e os homens em outras”, alerta.

Ela destaca, ainda, a aplicabilidade dos prêmios deste ano, que premiou iniciativas que melhoram diretamente a vida das pessoas — algo que está próximo das áreas onde as mulheres costumam ter mais presença.

Últimas seis vencedoras do Nobel de Medicina: Linda B. Buck; Françoise Barré-Sinoussi; Carol Greider;  Elizabeth Blackburn; May-Britt Moser e Youyou Tu. — Foto: Na ordem: Sven Nackstrand/AFP; Stephane de Sakutin/AFP; Uwe Anspach/AFP;  Fundação Nobel; A. Mahmoud/Fundação Nobel; Jin Liwang/AP | Arte: G1

Últimas seis vencedoras do Nobel de Medicina: Linda B. Buck; Françoise Barré-Sinoussi; Carol Greider; Elizabeth Blackburn; May-Britt Moser e Youyou Tu. — Foto: Na ordem: Sven Nackstrand/AFP; Stephane de Sakutin/AFP; Uwe Anspach/AFP; Fundação Nobel; A. Mahmoud/Fundação Nobel; Jin Liwang/AP | Arte: G1

Rodrigues acredita que as premiações servem de estímulo a outras mulheres. “Quando temas mais cotidianos são premiados, elas podem ver e pensar, ‘nossa, eu podia estar ali’. E podia mesmo, é só se esforçar. Não é impossível”, conclui.

Economia

A princípio, economia pode parecer a área em que as mulheres são pior favorecidas: apenas uma levou a láurea — a americana Elinor Ostrom, em 2009. No entanto, há um detalhe: o prêmio só foi criado em 1968, mais de seis décadas depois das categorias pioneiras.

O motivo, explica a economista Hildete Pereira de Melo, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) , é que a economia não era entendida como ciência no começo do século. Considerados só os últimos 50 anos, economia e física têm o mesmo número de ganhadoras mulheres. O índice na economia ainda é um pouco mais alto: 1,23%.

Para a economista Maria da Conceição Tavares, ex-professora da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de ex-integrante da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), o problema é o mesmo para todas as chamadas ciências “duras”, premiadas pelo Nobel.

“Há discriminação nos Nobéis contra as mulheres, não é só na economia. De um modo geral a academia é muito pouco permissiva às mulheres. Nas profissões duras não tem mulher. Há um preconceito contra”, afirma.

Para Melo, a economia, assim como a ciência, é um espaço de poder, e masculino.

A americana Elinor Ostrom, única vencedora do Nobel em Economia — Foto: Raveendran/AFP

A americana Elinor Ostrom, única vencedora do Nobel em Economia — Foto: Raveendran/AFP

“As mulheres estão sempre presentes nas pesquisas, nos laboratórios, mas elas são sempre uma figura invisível. O sucesso em economia passa pelo exercício do poder. Se você pegar todos os grandes economistas, eles estiveram, uma hora ou outra, no poder. Sobretudo abaixo do Equador. Abaixo do Equador, também, ninguém ganha Nobel no mundo. Abaixo do Equador só ganha-se Nobel em Literatura e de Paz — que é o que caracteriza os Nobéis femininos. Não são os Nobéis científicos. Nessa disputa, as mulheres, a partir do movimento feminista dos anos 70, vão aparecer mais. Ou você bota a boca no trombone ou nada muda”, afirma.

A professora enxerga na maternidade uma das raízes para essa lacuna. “As mulheres precisam ter exemplos para se verem. Porque você só se vê como mãe — abnegada mãe. Por que é que as mulheres vão fazer a área de saúde? Porque as mulheres são treinadas para cuidar das pessoas. Ninguém escolhe uma profissão que não conhece”, diz.

Maria da Conceição Tavares é ainda mais contundente: “Eu acho que se não tivesse passado pelas Nações Unidas, pela Cepal, eu não teria conseguido ser notória. Só na profissão de professora de economia não daria, porque tem preconceito contra as mulheres. Ou você tem alguma dúvida?”

Paz

Se “botar a boca no trombone” é necessário para algo mudar, foi exatamente isso o que fizeram as 17 ganhadoras do prêmio na categoria da paz, que tem o maior índice de mulheres: 16%. A primeira vencedora, a baronesa austríaca Bertha von Suttner, era amiga próxima de Alfred Nobel e realizou diversos esforços pela paz no período pré-Primeira Guerra Mundial.

Nadia Murad e Malala Yousafzai, últimas vencedoras do Nobel da Paz — Foto: Malala Yousafzai: David Himbert - Hans Lucas - AFP; Nadia Murad: AP

Nadia Murad e Malala Yousafzai, últimas vencedoras do Nobel da Paz — Foto: Malala Yousafzai: David Himbert – Hans Lucas – AFP; Nadia Murad: AP

Em 2014, ficou com a láurea a paquistanesa Malala Yousafzai, que, aos 17 anos, foi a pessoa mais nova a ganhar o prêmio, em qualquer categoria. Ativista pelos direitos de meninas de irem à escola, ela foi vítima de um atentado do Talibã e hoje mora no Reino Unido, onde continua a luta para que garotas tenham acesso a educação.

Na premiação deste ano, a ativista iraquiana da minoria yazidi Nadia Murad foi a vencedora. Sequestrada e mantida como escrava sexual pelo Estado Islâmico, ela é uma das 3 mil meninas da minoria étnicorreligiosa que sofreram estupros e outros abusos pelo grupo, segundo estimativas do comitê do Nobel. A premiação considerou que ela e Denis Mukwege, com quem dividiu o prêmio, “colocaram em risco sua segurança pessoal combatendo crimes de guerra e buscando justiça para as vítimas.”

Outras vencedoras incluem Ellen Johnson Sirleaf, primeira líder de estado a ser democraticamente eleita na África; Shirin Ebadi, primeira juíza mulher no Irã, presa por criticar o sistema de governo do país; e Wangari Maathai, primeira professora universitária mulher no Quênia e primeira mulher africana a receber o prêmio na categoria da paz.

Literatura

Apenas 14 dos 114 vencedores do prêmio Nobel na categoria são mulheres: 12%. Para a professora da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie Marlise Vaz Bridi, especialista em literatura de autoria feminina, uma das explicações é que as mulheres, por muito tempo, não tiveram acesso a escolas e alfabetização.

“Durante séculos muitas coisas foram escritas por mulheres que usavam nomes masculinos. As mulheres demoraram para se pensar em todas as áreas, e na literatura não seria diferente. Elas tiveram oportunidade de estudar e de serem alfabetizadas. de escrevem, terem vida própria, muito tardiamente. As escolas eram para os homens; as mulheres eram para os homens, para a casa, para a vida privada”, explica.

Já em 1929, a escritora britânica Virginia Woolf chegou a afirmar, no ensaio ‘Um Teto Todo Seu’, que “arrisco-me a dizer que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem cantá-los, com frequência era uma mulher”.

Vencedoras do Nobel em Literatura: (acima) Selma Lagerlöf, Grazia Deledda, Sigrid Undset, Pearl Buck. Abaixo: Gabriela Mistral, Nelly Sachs, Nadine Gordimer, Toni Morrison  — Foto: Fotos: Fundação Nobel. | Arte: G1

Vencedoras do Nobel em Literatura: (acima) Selma Lagerlöf, Grazia Deledda, Sigrid Undset, Pearl Buck. Abaixo: Gabriela Mistral, Nelly Sachs, Nadine Gordimer, Toni Morrison — Foto: Fotos: Fundação Nobel. | Arte: G1

Bridi cita, como exemplo desse temor em assinar o próprio nome, o caso da escritora britânica J.K. Rowling, autora da série de livros ‘Harry Potter’, que utilizou as iniciais, e não o nome completo, na capa dos livros — por orientação dos próprios editores. O primeiro livro da série foi publicado em 1997, quase sete décadas depois da frase de Woolf.

A professora chama atenção, ainda, para o aspecto político da premiação. Apenas uma escritora latinoamericana venceu o prêmio: a chilena Gabriela Mistral, em 1945. Abaixo da linha do Equador, somente uma outra foi laureada: a sul-africana Nadine Gordimer, em 1991. “Nós somos a periferia do mundo”, afirma Bridi.

O próprio comitê do Nobel reconheceu a necessidade de premiar autores fora das fronteiras europeias. “Durante um longo tempo a Academia Sueca pôde, com justiça, ser criticada por tornar o prêmio um negócio europeu”, afirma a organização em seu site.

Vencedoras do Nobel de Literatura: Wislawa Szymborska, Elfriede Jelinek, Doris Lessing, Herta Müller, Alice Munro, Svetlana Alexievich — Foto: Fotos (na ordem): Fundação Nobel (Wislawa Szymborska, Elfriede Jelinek); Fundação Nobel/Universidade de Montana (Doris Lessing, Herta Müller); J Munro/Fundação Nobel (Alice Munro); A. Mahmoud/Fundação Nobel (S. Alexievich)

Vencedoras do Nobel de Literatura: Wislawa Szymborska, Elfriede Jelinek, Doris Lessing, Herta Müller, Alice Munro, Svetlana Alexievich — Foto: Fotos (na ordem): Fundação Nobel (Wislawa Szymborska, Elfriede Jelinek); Fundação Nobel/Universidade de Montana (Doris Lessing, Herta Müller); J Munro/Fundação Nobel (Alice Munro); A. Mahmoud/Fundação Nobel (S. Alexievich)

A maior parte dos laureados entre 1901 e 2017 publicou obras em inglês: 29. Francês aparece em segundo lugar, sendo a língua de 14 dos ganhadores; alemão é o terceiro, com 13. O único vencedor a publicar em português foi José Saramago, em 1998.

A Academia Sueca decidiu, em maio, que não iria conceder o Nobel na categoria este ano, devido a denúncias de agressões sexuais, feitas por 18 mulheres, contra um indivíduo ligado à premiação.

Compartilhe  

últimas notícias