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Moradores de cidades atingidas por ‘mar de lama’ seguem busca por reconhecimento de direitos

Em Barra Longa, cidade vizinha a Mariana, há reclamações, tanto na sede do município quanto em Gesteira, distrito que teve parte dos imóveis destruída. A

Moradores de cidades atingidas por ‘mar de lama’ seguem busca por reconhecimento de direitos
Moradores de cidades atingidas por ‘mar de lama’ seguem busca por reconhecimento de direitos

Redação Publicado em 07/11/2018, às 00h00 - Atualizado às 14h04


Conheça situação de quem cobra respostas e assistência por impactos na renda e até na saúde.

A busca por reconhecimento de direitos ainda é uma luta em cidades mineiras impactadas pelo desastre de Mariana, considerado o maior já registrado no Brasil. O rompimento da barragem da Samarco, ocorrido há três anos, causou 19 mortes, destruiu casas, devastou o Rio Doce, mas também impactou a renda de moradores, arruinou plantações e criações e, de acordo com relatos de atingidos, provocou reflexos na saúde.

Em Barra Longa, cidade vizinha a Mariana, há reclamações, tanto na sede do município quanto em Gesteira, distrito que teve parte dos imóveis destruída. A aposentada Vera Lúcia Aleixo e Silva, de 62 anos, perdeu a casa quando o “mar de lama” chegou à comunidade em 5 de novembro de 2015.

Em Gesteira, distrito de Barra Longa, moradoras cobram reconhecimento por impacto na renda — Foto: Raquel Freitas/G1

Em Gesteira, distrito de Barra Longa, moradoras cobram reconhecimento por impacto na renda — Foto: Raquel Freitas/G1

“Passei a noite no mato e, no outro dia, meu menino conseguiu também passar para o mato para pegar a gente para levar a gente para Mariana porque não tinha passagem”, relembra. Desde aquele dia, ela não retornou de vez para Gesteira e, apesar de temer a demora do regresso, não perde a esperança de voltar a se sentir em casa.

O direito ao reassentamento, segundo ela, está garantido. Entretanto, Vera afirma que não conseguiu retomar as atividades que eram fonte de renda extra. Para ajudar a manter filha na faculdade, a aposentada oferecia serviços de cabeleireira e manicure em um salão domiciliar.

“Quando ela vai morar em Mariana, longe de Barra Longa e de Gesteira, por mais que ela continue com a expertise, ela não tem as clientes. Ela vai chegar em Mariana, em um ambiente totalmente diferente, ela não conhece nem os vizinhos dela”, argumenta o procurador do Ministério Público Federal (MPF) Helder Silva, que tem acompanhado de perto a situação em cidades mineiras.

Segundo ele, não são raros os casos em que atingidos são assistidos em apenas um aspecto dos vários danos sofridos. “A [Fundação] Renova, por exemplo, ao invés de ela chegar e tratar a pessoa assim como um todo, aquela família, a Renova é seccionada por programas e aí você percebe claramente que é aquela visão de empresa, não é uma visão das pessoas”, diz.

Creusa da Silva Gomes teve renda impactada ao perder plantação em Gesteira — Foto: Raquel Freitas/G1

Creusa da Silva Gomes teve renda impactada ao perder plantação em Gesteira — Foto: Raquel Freitas/G1

Creusa da Silva Gomes, de 63 anos, mora na parte mais alta de Gesteira. O local não foi atingido pela lama, mas o terreno em que aposentada cultivava frutas e verduras, sim. “Milho que a gente plantava, feijão, bananeira, laranja, outras frutas, legumes, verdura. E, até hoje, a gente não foi recompensado com nada”, reclama.

Creusa, que nunca havia precisado comprar esses itens, diz que viu o orçamento mensal ficar apertado.

“Espero que eles façam alguma coisa de melhoria para nós, para todo mundo. Não para mim só, para todo mundo. Porque todo mundo está nessa expectativa de receber, ter o direito, todos, que todo mundo tem, né? Aí, o povo está esperando que eles paguem e cumpram com a obrigação deles”, diz.

As reclamações seguem entre moradores da sede do município. Amélia Beatriz Mendes, de 27 anos, assim como Vera e Creusa, afirma que a renda da família foi impactada pela enxurrada de rejeitos da mineração. Ela conta que o marido perdeu o emprego após a cachaçaria em que ele trabalhava ser atingida pela lama de Fundão.

Amélia Beatriz Mendes se pergunta por que o marido, que perdeu o emprego, não foi reconhecido como atingido — Foto: Raquel Freitas/G1

Amélia Beatriz Mendes se pergunta por que o marido, que perdeu o emprego, não foi reconhecido como atingido — Foto: Raquel Freitas/G1

A jovem se pergunta por que o companheiro não foi reconhecido pela Fundação Renova como atingido pelo desastre. “Onze [colegas] foram reconhecidos, que trabalhavam fazendo o mesmo do que ele, cortando, enchendo, descarregando caminhão de cana. Aí, os 11 foram reconhecidos, só o meu marido e irmão dele que não”, afirma.

A entidade, criada em 2016 a partir de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) para atuar na reparação de danos causados pelo desastre, afirma que não comenta casos específicos.

“Para preservar a privacidade dos atingidos, a Fundação Renova não dá informações relativas a demandas individuais. Contudo, a Renova assegura que todas as análises de elegibilidade dos programas de Indenização Mediada (PIM) e Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) são realizadas com base nos requisitos do programa, estabelecidos pelo TTAC e amplamente divulgados”, informa a entidade por meio de nota. No total, 281 cartões de auxílio financeiro emergencial são pagos em Barra Longa.

Muitos também reclamam de impactos na saúde. Cunhada de Amélia, Simone Maria da Silva, de 39 anos, integra o Movimento de Atingidos por Barragem (MAB). Uma das muitas lutas dela é pelo reconhecimento da situação da filha, a pequena Sofia, de 3 anos. Segundo Simone, desde a chegada da lama, a menina sofre com constantes crises de alergia, que provocam manchas na pele.

“A luta é pelo reconhecimento de nós atingidos. Na área da saúde, nós não somos reconhecidos ainda. (…) Ela [Renova] não reconhece os atingidos contaminados. Apesar de todos os laudos, todos os exames, ela continua alegando que a lama é inerte, que a lama não faz mal”, diz. Além das alergias, há relatos de impactos à saúde mental, com casos de depressão, principalmente entre idosos.

Simone Maria da Silva diz que a filha, de 3 anos, sofre com crises de alergia desde que a lama tomou Barra Longa — Foto: Raquel Freitas/G1

Simone Maria da Silva diz que a filha, de 3 anos, sofre com crises de alergia desde que a lama tomou Barra Longa — Foto: Raquel Freitas/G1

A Fundação Renova diz que em julho deste ano, cerca dois anos e meio após rompimento da barragem, foi iniciada uma pesquisa de avaliação de risco à saúde.

“O objetivo da pesquisa é dimensionar os riscos à saúde humana pela exposição a elementos químicos existentes no meio ambiente, ao longo de toda a área atingida pelo rompimento da barragem (…)Tendo sido identificados impactos relacionados ao desastre à saúde da população atingida, o estudo indicará as ações mitigatórias necessárias para garantir a saúde dos atingidos, a serem executadas pela fundação”, afirma em nota. De acordo com a entidade, também serão avaliados outros aspectos, como impactos à saúde mental.

Simone é atuante na busca de direitos dos atingidos em Barra Longa, mas afirma não ser oficialmente reconhecida em nenhum critério. “Eu sou atingida quando a minha família sai de casa só com a roupa do corpo, se é a minha família sou eu. Se aqui [Gesteira] era o local onde eu vivia, eu sou atingida. Quando meu vizinho da direita é atingido, quando meu vizinho da esquerda é atingido, quando os meus filhos perdem a saúde, eu sou atingida. (…) Se a minha cidade é atingida, eu sou atingida”, afirma.

Nascida e criada em Gesteira, ela já não morava na comunidade quando lama devastou o local e suas memórias, mas parte de sua família, sim. A casa dela, na sede da cidade, não foi levada pela lama como a de sua avó, mas, ela diz que o imóvel não ficou imune aos reflexos da tragédia. Segundo Simone, trincas apareceram por causa do trânsito de caminhões das obras de reparação na cidade. Após uma sequência de protestos de moradores, a Renova anunciou em outubro, o pagamento de aluguel social para famílias que vivem em 30 casas condenadas.

“Eu olho para a minha pequeninha, olho para Sofia e, às vezes, ela fala: ‘né, mamãe? Eu estou doente por causa da poeira da Samarco. A nossa casa está trincada, mamãe, por causa do caminhão da Samarco, né? Aí, na mesma hora que eu penso em desistir, eu me fortaleço nela porque ela é muito guerreira. Ela é guerreira demais porque uma criança que passou por tudo que ela passou, e ela está de pé, ela consegue sorrir e ser forte. Então, a minha fortaleza hoje é minha filha. Eu vou lutar até o último instante para que ela seja reconhecida, para que ela tenha direitos”, desabafa.

Ao longo da bacia do Rio Doce, há uma enxurrada de outros casos da busca de reconhecimento de direitos.  — Foto: Raquel Freitas/G1

Ao longo da bacia do Rio Doce, há uma enxurrada de outros casos da busca de reconhecimento de direitos. — Foto: Raquel Freitas/G1

Ao longo da bacia do Rio Doce, há uma enxurrada de outros casos da busca de reconhecimento de direitos. Números da Fundação Renova apontam que aproximadamente de 11 mil famílias, o que representa mais de 25 mil pessoas, são assistidas pelo programa de auxílio financeiro emergencial. A entidade também informa que mais 7,5 mil indenizações por danos gerais e cerca de 255 mil por causa de questões relacionadas à água foram pagas. Ao todo, auxílios e indenizações somam o total de R$ 1,2 bilhão até o momento.

Entretanto, de acordo com o procurador Helder Silva, mesmo três anos após o desastre, ainda não há uma estimativa precisa do número final de impactados que ainda podem vir a ser reconhecidos.

Em Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado, também na Zona da Mata, pescadores e garimpeiros, conhecidos como faiscadores, passaram a ser tratados como atingidos no fim do ano passado, após uma longa negociação. “A discussão começou em relação à atividade do garimpeiro tradicional, que é o faiscador. Quando se começou a solicitar a reparação para eles, o cartão emergencial, porque eles perderam a atividade, a primeira resposta da Samarco é que a atividade era ilegal. A gente teve uma luta para mostrar que não era”, diz.

Segundo ele, foi preciso que o MPF e Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) fizessem uma recomendação para as empresas, assinalando que atividade não é ilegal, e sim tradicional, o que enquadra esses atingidos no conceito de comunidade tradicional da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Pescador e garimpeiro, José Márcio Lazarani foi reconhecido como atingido em 2017   — Foto: Raquel Freitas/G1

Pescador e garimpeiro, José Márcio Lazarani foi reconhecido como atingido em 2017 — Foto: Raquel Freitas/G1

“Quem vai dizer quem é faiscador tradicional, são documentos? As pessoas não têm documento disso. Então, a gente conseguiu que a Renova aceitasse o autorreconhecimento coletivo do grupo”, afirmou. De acordo com o procurador, depois disso, mais de 200 pessoas passaram a receber o auxílio emergencial e tiveram uma antecipação de indenização. Hoje, de acordo com a Renova, benefício é pago em cerca de 320 cartões na cidade.

“Eu fui reconhecido como atingido dia 20 de dezembro de 2017 porque eu perdi minha atividade. Eu não fui procurar meu direito, fazer cadastro nem nada, eu não fui. Eu não sabia que eu tinha direito”, diz José Márcio Lazarini, de 47 anos, que trabalhava como faiscador e pescador em Rio Doce.

Silva afirma que mais pessoas ainda podem ser reconhecidas como atingidas pela mesma condição. “Algumas pessoas ficaram para trás por vários motivos, porque não acreditaram naquele processo que estava sendo feito, porque morava em lugares que as próprias comissões locais não chegaram até elas. E agora a gente está com esse trabalho reaberto para eles apresentarem a lista complementar”, explica.

Depois do reconhecimento de pescadores e faiscadores, outro avanço conquistado nos municípios foi a contratação de uma assessoria técnica, equipe multidisciplinar que auxilia os moradores nas negociações e na busca por direitos. Esse trabalho se iniciou em Mariana e também está presente em Barra Longa. A expansão dessas equipes para os demais municípios é garantido em um acordo assinado em junho deste ano.

Em Sem-Peixe, de acordo com a Fundação Renova, há registro de 13 cartões de auxílio financeiro emergencial — Foto: Raquel Freitas/G1

Ao longo da bacia do Rio Doce, há uma enxurrada de outros casos da busca de reconhecimento de direitos. — Foto: Raquel Freitas/G1

Em Sem-Peixe, também na Zona da Mata, foram iniciadas as discussões para que os moradores passem a contar com esse amparo técnico. A cidade tem cerca de 3 mil habitantes – a maioria deles na zona rural, que margeia o Rio Doce.

Em uma pracinha típica do interior de Minas, com uma igreja ao fundo, está o sindicato dos trabalhadores rurais do município. Na entrada do escritório da entidade, um cartaz informa sobre o cadastro definitivo de quem foi diretamente impactado e pede que o atingido “formalize a solicitação pelos canais de relacionamento da Fundação Renova”.

O informativo foi afixado bem ao lado da mesa onde trabalha a auxiliar de escritório Rosária Barcelos, de 38 anos. Apesar do chamamento da fundação, ela acredita que muitas pessoas na cidade ainda não procuraram a Renova, por desconhecimento, dificuldades em reunir documentação, ou por medo de, em algum momento, ter que devolver o auxílio. Exemplo, Rosária tem em casa.

“O meu marido tem um pasto alugado, ele pagava – paga até hoje – o aluguel mensal. Ele não tinha como provar em documentação, que ele tinha esse gado lá. Ele perdeu três bois, hoje seria num valor de R$ 6 mil. E ele não foi ressarcido porque não correu atrás por esse medo. ‘Como que eu vou provar que eu perdi, sendo que eu não tenho como provar que esses bois estavam lá?’”, conta.

Assim como o marido, pescadores da cidade, que não tinha a carteirinha que comprova a atividade, não solicitaram auxílio, segundo Rosária. “Tiveram pessoas que não entraram com reclamação nenhuma com medo de não ser ressarcido e, até mesmo se fosse ressarcido, tem medo, se ele conseguisse receber alguma coisa ter que devolver, ser uma coisa que não era direito deles”, diz.

Na cidade, de acordo com a Fundação Renova, há registro de 13 cartões de auxílio financeiro emergencial.

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