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Marcus Vinicius de Freitas: O Novo Normal Global e o Brasil

A posição global dos Estados Unidos vem declinando desde o fim da Guerra Fria. O fato de os norte-americanos elegerem, em 1992, Bill Clinton e não George

Marcus Vinicius de Freitas: O Novo Normal Global e o Brasil
Marcus Vinicius de Freitas: O Novo Normal Global e o Brasil

Redação Publicado em 22/07/2020, às 00h00 - Atualizado às 10h20


O novo normal global e o Brasil

A posição global dos Estados Unidos vem declinando desde o fim da Guerra Fria. O fato de os norte-americanos elegerem, em 1992, Bill Clinton e não George Bush, um verdadeiro internacionalista, é a maior evidência de um posicionamento histórico de isolacionismo. A culpa não é do Presidente Donald Trump, que peca mais pelo estilo do que pelo conteúdo de suas medidas. Em várias áreas, a hegemonia dos Estados Unidos, no entanto, tem sido desafiada. Sua superioridade ainda reside na qualidade acadêmica de suas instituições universitárias, no seu vasto poderio militar e o fato de o dólar ser a moeda reserva de valor global. Em todas as áreas, no entanto, à exceção da militar, tem-se observado uma relativa deterioração.

Os Estados Unidos foram favorecidos pela Segunda Grande Guerra, prevalecendo substantivamente até a década de 1970, quando os países destruídos pela Guerra finalmente começaram a recuperar-se economicamente. Os países apoiados pelos norte-americanos reconheciam e apoiavam o seu poder hegemônico nas relações internacionais e tais alianças foram essenciais à sua consolidação como líder do mundo livre. Além disso, souberam utilizar a sua marca da nação (“nation-branding”), através de instrumentos como esportes, Hollywood e o entretenimento, muito mais efetivos até mesmo que a sua própria diplomacia.

No entanto, o fim da Guerra Fria deu origem a três eventos nos quais a atuação dos Estados Unidos deixou a desejar: a inabilidade na administração e apoio aos países afetados pela crise financeira do Sudeste Asiático na década de 1990; a truculência em suas ações contra o terrorismo, inclusive com violações aos direitos humanos e o recurso à invericidade no caso das supostas armas de destruição em massa existentes no Iraque; e a utilização “a la carte” dos organismos multilaterais quando de seu interesse, ou o substancial negligenciamento quando contrários aos seus interesses.

O resultado é que nesse processo, com resiliência, inventividade e muito pragmatismo, a China saiu da periferia do sistema internacional e se transformou numa Grande Potência no centro do sistema internacional. Ao ascender, a China tem buscado fortalecer-se no cenário global. Apesar da COVID-19 – que os chineses reconhecidamente gerenciaram com muita efetividade – e o seu respectivo impacto global, a realidade é que se observou um Ocidente com várias fraturas, desde os sistemas públicos de saúde, quando existentes, até à desorganização e retração econômica num prazo curtíssimo de tempo.

Neste cenário de transição global, é importante relembrar que não importa o governo, direita ou esquerda, o Brasil é, a princípio, uma Grande Potência. O isolamento geográfico propicia ao País a equidistância necessária para observar e atuar nas movimentações globais com sabedoria, com um arco de influência que deveria estender-se desde Los Algodones, no México, à Ushuaia, na Argentina. O Brasil constitui uma liderança natural, no entanto, sem seguidores, apesar de a história comprovar que o país é essencial na América Latina.

Os interesses do Brasil na região são e serão, sem dúvida, conflituosos, muitas vezes, com aqueles dos Estados Unidos. Apesar da longa parceria histórica, o Brasil jamais constituiu uma prioridade na agenda norte-americana. Engana-se o atual governo em pensar o contrário, baseado numa suposta amizade pessoal entre Trump e Bolsonaro. A ordem mundial, estabelecida há mais de 70 anos, jamais outorgou ao Brasil protagonismo global. A ascensão global da China, no entanto, oferece ao Brasil uma nova oportunidade para incrementar sua relevância na região e globalmente, atuando, ademais, como um importante pivô do país asiático na América Latina. A China vem investindo substancialmente na  região e, certamente, teria interesse num aprofundamento da parceria bilateral para manutenção da estabilidade regional para a continuidade de seus investimentos e empreendimentos na região, com uma perspectiva substancial de cooperação no longo prazo. O Brasil, como um país historicamente construtor de consenso, poderia atuar, juntamente com a China, para assegurar uma maior evolução do continente, inclusive forjando um renovado interesse dos Estados Unidos na região.

À medida que a governança global vai-se alterando – e é necessário que mude, pois é injusta –  deve o Brasil compreender os ventos de mudança, ajustar o rumo e entender como utilizar-se do momento para incrementar seu papel internacional e implementar seus interesses no curto, médio e longo prazos. O Brasil deveria nessa transição construir novas parcerias com resultados e melhorias efetivas na sua presença global. Daí o erro de alinhar-se automaticamente com os Estados Unidos na Organização Mundial de Comércio e em outras instituições globais. Num mundo em transição, tem-se que tomar muito cuidado para não acender vela ao santo errado. Como diz o velho provérbio português, “em briga de cachorro grande, quem mete a mão acaba mordido”.  Isso é estratégia.

Marcus Vinicius de Freitas, Professor de Direito e Relações Internacionais, na Universidade de Relações Exteriores da China
Twitter/Instagram: @mvfreitasbr

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