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Marcus Vinicius de Freitas: O Brexit e o Brasil

Certa feita, Margaret Thatcher afirmou que “referendos são um instrumento para ditadores e demagogos”, uma vez que referendos sacrificam a soberania popular à

Marcus Vinicius de Freitas: O Brexit e o Brasil
Marcus Vinicius de Freitas: O Brexit e o Brasil

Redação Publicado em 21/10/2020, às 00h00 - Atualizado às 09h38


O Brexit e o Brasil

Certa feita, Margaret Thatcher afirmou que “referendos são um instrumento para ditadores e demagogos”, uma vez que referendos sacrificam a soberania popular à conveniência política. Com certeza, ela jamais teria caído na armadilha do BREXIT. 

No entanto, foi o próprio Partido Conservador de Thatcher que se equivocou ao utilizar esse instrumento “democrático” para consultar a população em duas questões sensíveis: a permanência da Escócia do Reino Unido e a saída deste da União Europeia (UE). No primeiro caso, a vitória foi apertadíssima a favor da permanência escocesa. No segundo, uma maioria mínima venceu. E o Reino Unido passou a enfrentar o seu maior desafio de natureza econômica neste século.

Não há dúvidas de que a estrutura da UE precisa ser melhorada. Existem problemas na transparência e responsabilidade dos agentes encastelados em Bruxelas e Estrasburgo. O centro de poder é distante e as decisões carecem da legitimidade do voto popular. Os parlamentos nacionais, muitas vezes, se transformaram em meros chanceladores das decisões tomadas por tais agentes. Isso acarreta um reconhecido déficit democrático na UE. Para muitos britânicos, acostumados a uma democracia intensa e estável, isso não parecia correto.

O olhar britânico para além do Canal da Mancha sempre foi desconfiado. O isolacionismo britânico, natural até pelo relevo geográfico, permitiu àquela ilha construir enorme resiliência ao longo dos séculos. Ninguém pode negar a enorme influência do “império onde o sol nunca se punha”.

Mas o tempo passou e o grande império voltou a ser apenas um Reino numa pequena ilha do Atlântico Norte. Relevante – é verdade – com peso econômico e políticoglobal, além de potência nuclear e membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Na UEexerceu um papel importante de racionalidadefavorecendo o crescimento orgânico das relações econômicas. O Reino Unido jamais foi favorável a uma união política, como se tem almejado no Continente Europeu.

David Cameron não levou tudo isso em consideração. Decidiu, como num jogo de roleta, apostar na conveniência política. Perdeu. Theresa May, sua ex-Secretária de Assuntos Interiores e sucessora como Primeira-Ministra, incorreu no mesmo erro. Sua longevidade no poder foi até mais longa do que o esperado, não por suas habilidades políticas, mas sim pelo fato de que ninguém queria, de fato, assumir a paternidade do divórcio da UE, algo que será altamente questionado pela história no futuro.

Este divórcio retém alguns entraves: a conta a pagar pelos compromissos assumidos pelo governo britânico; os 3 milhões de cidadãos europeus residindo no Reino Unido e os 1.5 milhões de britânicos que vivem no continente; e a questão complicadíssima da Irlanda do Norte, palco de uma série de conflitos de natureza religiosa e política, cujo processo de paz, através dos Acordo de Belfast (Sexta-Feira Santa”), estabeleceu uma série de garantias, incluindo a livre circulação entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.Existe, ainda, o conflito entre aqueles que apoiam a permanênciana UE, como a Escócia e a Irlanda do Norte, e a Inglaterra, que se opõe. O Reino, que era Unido, pode terminar Desunidoem alguns anos. E para piorar a situação, o país tem atravessado, com dificuldade, a crise imposta pelo COVID-19.

Por essas razões que se tem a impressão de que o governo de Boris Johnson fará o Reino Unido deixar a UE em 31 de dezembro deste ano sem um acordo. Isto forçará o país a comercializar com a UE de acordo com as regras da enfraquecida Organização Mundial do Comércio. Sem acordo, o Reino Unido será tratado como qualquer país pelo bloco. A esperança de um acordo, ainda que de última hora, poderia garantir menos tarifas e restrições aos produtos e serviços britânicos, particularmente num momento em que a recuperação econômica é uma necessidade premente.

Considerando que crises são oportunidades disfarçadas, há muito que o Brasil poderia ganhar. Um acordo de livre comércio com o Reino Unido parece muito mais viável, rápido e fácil do que a longa e exaustiva negociação – que ainda perdurará por anos – do acordo firmado com UE. Os britânicos produzem serviços. O Brasil produz comida. Há complementaridade. Há sinergia.Ademais, se o acordo britânico com a UE não ocorrer, deverá ocorrer uma desvalorização da libra nos próximos anos, o que barateará os ativos existentes naquele país. As empresas brasileiras deveriam aproveitar esse momento positivo para comprar ativos britânicos, estabelecer parcerias de distribuição e incrementar o comércio intra-indústria nos setores em que temos competitividade, utilizando o Reino Unido como uma plataforma global.

Apesar de tudo, engana-se quem acredita que o afastamento da União Europeia levará ao fim do Reino Unido. Os britânicos são resilientes, hábeis e pragmáticos. Certamente, conseguirão desenvolver uma solução inovadora e criativa para o novo cenário global que vislumbram. É hora de descobrir o mundo. Quem sabe o erro dos referendos britânicos não seja o início dos nossos acertos?

Marcus Vinicius de Freitas

Professor Visitante

Universidade de Relações Exteriores da China

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