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Marcus Vinicius de Freitas: Coreia do Norte e o Armagedão Asiático

A Coreia do Norte é um país peculiar: tive a oportunidade ímpar de visitá-la em 2019.  Isolada desde 1948, sob o regime da dinastia Kim, pela qual se nutre um

Marcus Vinicius de Freitas: Coreia do Norte e o Armagedão Asiático
Marcus Vinicius de Freitas: Coreia do Norte e o Armagedão Asiático

Redação Publicado em 26/08/2020, às 00h00 - Atualizado às 10h03


Coreia do Norte e o Armagedão Asiático

A Coreia do Norte é um país peculiar: tive a oportunidade ímpar de visitá-la em 2019.  Isolada desde 1948, sob o regime da dinastia Kim, pela qual se nutre um verdadeiro culto à personalidade, esse pequeno país asiático, de cerca de 26 milhões de habitantes e uma renda per capita anual estimada em US$ 1.700,00, jamais deveria ocupar tanto espaço no noticiário internacional.

Resultado último da Guerra Fria, a Coreia do Norte logrou uma existência distante e isolada. Por muito tempo se acreditou, após a Reunificação da Alemanha, que, eventualmente, se chegaria a uma unificação na península coreana, com a prevalência cultural e econômica da Coreia do Sul, país com quase 52 milhões de habitantes e uma renda per capita de US$ 31.762,00. Essa expectativa, no entanto, por mais resiliente que seja, ainda está muito distante. A reunificação da península coreana apresenta quatro aspectos difíceis de serem resolvidos: i) a unificação seria temerária tanto à China como à Rússia, uma vez que se colocaria na fronteira um parceiro mais próximo dos Estados Unidos; ii) a unificação poderia estimular uma eventualremilitarização do Japão, inimigo histórico das Coreias; (iii) qualquer tipo de confronto militar regional poderia implicar uma desaceleração econômica na Ásia; e (iv) surtos migratórios resultantes de disrupções políticas na região podem desacelarar o progresso regional.

A verdade é que Kim Jong-untem-se revelado um estrategista hábil. Ele conseguiu fazer aquilo que o Irã tem tentado há muito tempo, porém sem êxito: construir um arsenal militar nuclear para assegurar a sua própria sustentabilidade no governo.Com habilidade e sagacidade, Kim buscou uma rota diferente, impedindo que os estadunidenses buscassem a troca de regime, isto é, a sua queda.

Ademais, Kim encontrou, em Washington, DC, ao longo dos últimos anos, dois parceiros ideais: Barack Obama, que liderou um desengajamento mundial dos Estados Unidos, ao “liderar por trás”, abandonando a preeminência daquele país na ordem global. E, a partir de 2017, um novo presidente, Donald Trump, que, por se considerar um hábil negociador, encontrou em  Kim um jogador arrojado, que também sabe usar as poucas cartas que tem,  em muito menor escala que o arsenal bélico que o seu oponente. Tudo isto cria um cenário de enorme preocupação global, porque, se uma guerra viesse a ocorrer, seu efeito seria devastador para a Coreia do Sul e o Japão, diretamente. E seria, de fato, a primeira vez, em que se faria uma guerra a um país nuclearmente armado, algo inédito e de resultados desconhecidos. Teríamos, de fato, um cenário de Armagedon naquela parte do mundo, com um enorme impacto global.

A guerra não interessa a ninguém. O custo seria elevadíssimo e, de fato, haveria muito pouco a ganhar. O que interessa a Kim é a manutenção do status quo. Para fazê-lo, precisa de recursos. Por isso, a ameaça nuclear é um instrumento de pressão à sociedade internacional, uma vez que um eventual enfrentamento, o custo seria devastador e globalmente sentido.

As reuniões entre os presidentes Donald Trump e Kim Jong-un têm sido repletas de gestos e rituais, com o objetivo mostrar ao mundo que países belicosos podem, eventualmente, relacionar-se de uma maneira civilizada. O Presidente Trump utilizou, ao máximo, suas técnicas de negociação para atingir o objetivo de entrar para a história como o presidente norte-americano que deu o golpe de misericórdia na última herança da Guerra Fria e uma guerra inacabada. Mais importante ainda, logrou implementar o início de um processo jamais visto de desnuclearização de uma potência nuclearmente armada. Só que tudo muito pouco se tem avançado.

Desmantelar armas nucleares demora mais que uma década. Com as idas e vindas resultantes de conflitos que, eventualmente, surgirão, o processo deverá render ainda muitos impasses. Ainda que fosse reeleito,Presidente Trump, no entanto, já terá partido da Casa Branca antes de ver os resultados das negociações acontecerem efetivamente. E sem o prêmio Nobel, que seu antecessor, Barack Obama, conseguiu com muito menos esforço. Kim Jong-Un, ao livrar-se das sanções e assegurar o crescimento do seu país, com uma reformulação da sua política econômica, deverá ainda continuar no poder. Se não ele, a irmã, Kim Yo-jong, herdeira presuntiva na liderança norte-coreana.

Critique-se Trump ou não, a realidade é que, desde que ele começou a movimentar-se quanto à Coreia do Norte, as tensões acalmaram sobremaneira. E o mundo, de algum modo, tem respirado um pouco mais aliviado. 


Marcus Vinicius de Freitas:

Professor de Direito e Relações Internacionais, na Universidade de Relações Exteriores da China
Twitter/Instagram: @mvfreitasbr

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