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Marcus Vinicius de Freitas: Afeganistão, o grande erro

Marcus Vinícius De Freitas

Marcus Vinicius de Freitas: Afeganistão, o grande erro
Marcus Vinicius de Freitas: Afeganistão, o grande erro

Redação Publicado em 18/08/2021, às 00h00 - Atualizado às 19h29


Afeganistão, o grande erro

Marcus Vinícius De Freitas

O colapso do governo afegão e o retorno do Talibã ao poder, conforme exibido intensamente pela mídia global, revelou, uma vez mais, o enorme erro que foi a estratégia seguida pelos Estados Unidos – e seus aliados – após o fatídico 11 de setembro de 2001, quando militantes
da organização terrorista Al-Qaeda atacaram vários alvos em território norte-americano. Como afirmado nesta coluna anteriormente, de fato, havia justificativa para o ataque ao Afeganistão. Afinal, o país servira como campo de treinamento para radicais de uma caricatura do Islamismo, destacando-se, dentre eles, Osama bin Laden, velho conhecido dos Estados Unidos. Requisitada a entrega de bin Laden pelos Estados Unidos, o governo talibã rejeitou o pedido. Os Estados Unidos – após convencimento dos países membros da aliança da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), nos termos do artigo 5º do Tratado da OTAN – iniciou a ação militar, cujo objetivo era destruir os campos de treinamento e, eventualmente, eliminar Bin Laden. Esta foi a primeira e única vez em que o artigo 5º foi colocado em prática.

O objetivo inicial, no entanto, foi modificado. De uma ação imediata contra o Talibã a estratégia passou a compreender outros aspectos como a troca de regime em Cabul, com a retirada do Talibã do poder, e a possível construção de um modelo econômico, social e político ocidental no país, com a conquista dos corações e mentes para que, a partir dessa nova situação, o país se tornasse uma imagem nde uma democracia ocidental naquela região asiática.

Obviamente, tais pressupostos se baseavam num certo senso de superioridade na Civilização Ocidental que precisa ser reavaliado. Embora o Ocidente tenha contribuído intensamente para uma agenda de desenvolvimento social, econômico, político e humanitário nos últimos três séculos, o fato é que, muitas vezes, esta agenda ignora importantes peculiaridades de outras culturas. Os acontecimentos no Afeganistão demonstraram, claramente, que um regime político – ainda que apoiado pelos países ocidentais – não consegue subsistir sem o apoio do povo. Por não terem as forças de defesa oferecido resistência substancial ao Talibã e a inexistência de insurgências significativas no país evidenciaram que há uma parcela da população favorável ao retorno do Talibã. Ressalte-se, ainda, que a expectativa de que os problemas e desafios de um país podem ser resolvidos com intervenção militar é irreal e somente agrava a realidade. Estes aspectos são importantes e merecem uma reflexão profunda para impedir futuros equívocos. O que ocorreu no Afeganistão é trágico para milhões de afegãos que acreditaram que os Estados Unidos, seus aliados na OTAN, e até mesmo as Nações Unidas, haviam ocupado o país para protegê-los e fomentar a estabilidade no país. Todos falharam.

E a situação deteriorou profundamente. Apesar de atender à demanda da opinião pública norte-americana fatigada pela longa guerra, Joe Biden não poderia ter projetado uma estratégia de saída tão catastrófica, com tamanho pânico coletivo. Os parceiros de Washington não foram envolvidos e o famoso discurso de Biden de que a América multilateralista estaria de volta para trabalhar com seus aliados não se comprovou efetivamente. Nisto não se diferenciou muito de seu predecessor, Donald Trump. “America is back” and “America First” parecem ser os dois lados da mesma moeda.

O Afeganistão constituirá um enorme desafio nos próximos anos. A preocupação com os direitos humanos, o empoderamento feminino e a questão de execuções coletivas representam uma apreensão nos próximos anos. A possibilidade de o regime talibã tornar-se, novamente, abrigo seguro para extremistas será um enorme desafio à comunidade internacional, com implicações que representam verdadeiras incógnitas no xadrez da geopolítica global. Resta esperar que o Talibã de 2021 seja diferente de 2001.

China e Rússia deverão observar a situação no Afeganistão com cuidado. A Rússia, em razão da experiência histórica do período soviético, não deverá buscar qualquer tipo de intervenção direta no país. E os chineses – estudiosos da História como são – não pretenderão exercer no Afeganistão objetivos expansionistas. Os chineses compreendem a importância da estabilidade regional para fins de continuidade de suas iniciativas e investimentos relativos à Nova Rota da Seda e, também, para conter o ímpeto de organizações terroristas, como o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, um grupo radical uigur, ativo na região de Xinjiang, que busca, por meio de atividades terroristas, conseguir a independência desta região na China.

Talvez o fator mais importante para assegurar a estabilidade no Afeganistão seja o crescimento econômico do país, a inclusão cada vez maior de mulheres na vida política e econômica do pais. Com um desenvolvimento ampliado, muitos dos desafios atuais poderão ser superados. Por fim, nos próximos anos, o Afeganistão continuará uma preocupação relevante e que poderá afetar, eleitoralmente, o futuro do Partido Democrata nos Estados Unidos. Além disso, representa um desafio à posição hegemônica norte-americana, que vem passando por um processo cada vez maior de declínio. Resta saber se, uma vez mais, o fatídico Afeganistão será o cemitério de mais um império.

Marcus Vinícius De Freitas, Advogado e Professor Visitante, Universidade de Relações Exteriores da China

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