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Mais Médicos: maioria das vagas não ocupadas está nos distritos indígenas

Das 106 vagas que não foram ocupadas depois da primeira etapa de seleção de profissionais para o Mais Médicos, 63 estão em Distritos Especiais de Saúde

Mais Médicos: maioria das vagas não ocupadas está nos distritos indígenas
Mais Médicos: maioria das vagas não ocupadas está nos distritos indígenas

Redação Publicado em 14/12/2018, às 00h00 - Atualizado às 12h38


Depois da primeira fase de seleção, restaram 106 vagas a serem preenchidas pelo programa Mais Médicos. Dessas, 59% estão em distritos indígenas. Entre os motivos estão a formação médica brasileira e características da profissão no país, acreditam especialistas.

Das 106 vagas que não foram ocupadas depois da primeira etapa de seleção de profissionais para o Mais Médicos, 63 estão em Distritos Especiais de Saúde Indígena, os Dseis, o que equivale a 59% do total. Dos 34 distritos de saúde indígenas existentes no país, oito — todos no Norte — ficaram com vagas ociosas depois do término das inscrições na última sexta-feira (7).

Segundo especialistas ouvidos pelo G1, a explicação para esse cenário passa por três aspectos:

  • o isolamento de algumas dessas comunidades, principalmente as da região amazônica;
  • o perfil do estudante de medicina brasileiro;
  • o modo como a carreira médica é feita no Brasil.

Os distritos indígenas da Amazônia, por ficarem em locais de difícil acesso, sofrem ainda mais dificuldades no preenchimento de vagas, afirma Paulo Basta, supervisor dos médicos cubanos do Dsei Tapajós, no oeste do Pará, e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública.

Das 11 vagas que foram ofertadas no edital do Mais Médicos para o Tapajós, apenas cinco foram ocupadas. Em comparação, os distritos indígenas do litoral tiveram todas as vagas preenchidas na primeira etapa de seleção.

“As áreas da Amazônia são remotas, onde as pessoas têm muita dificuldade para chegar. Essa é a primeira dificuldade. E aí, quando você chega, as jornadas de trabalho não são iguais às que você tem nas cidades. São 20, 30 dias direto nos locais de trabalho. Esse é outro problema”, avalia Paulo.

Em nota ao G1, o Ministério da Saúde ressaltou que somente 18,9% das vagas em distritos não foram preenchidas e que o processo de seleção continua. Além disso, afirma que o atendimento a essa população é feita de outras formas:

“O Ministério da Saúde busca o aprimoramento constante das ações em saúde dos povos indígenas. (…) Para viabilizar essa assistência, o Ministério da Saúde utiliza transportes aéreos (aviões e helicópteros), terrestres (caminhonetes, caminhões, vans) e aquáticos (barcos) para a remoção de pacientes em consultas médicas, atendimentos de urgência e emergência e no transporte das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) em áreas específicas de programas desenvolvidos pela pasta.”

O ministério foi questionado pelo G1 sobre os motivos, apontados pelos especialistas, que explicam a maior dificuldade de preenchimento de vagas nos territórios indígenas, mas a pasta não comentou.

Procurada pela reportagem, a Fundação Nacional do Índio (Funai) preferiu não se manifestar.

Mais vagas que médicos: 106 vagas não foram preenchidas após primeira etapa de seleção — Foto: Juliane Monteiro/G1

Mais vagas que médicos: 106 vagas não foram preenchidas após primeira etapa de seleção — Foto: Juliane Monteiro/G1

Atrair médicos para as regiões mais afastadas do país foi um dos problemas que o Mais Médicos buscou resolver, empregando brasileiros e estrangeiros. Criado em 2013, durante o governo Dilma Rousseff, o programa chegou a trazer para o Brasil cerca de 11 mil médicos cubanos, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Quando o país caribenho decidiu deixar o programa, no mês passado, eram 8,3 mil profissionais atuando aqui.

O Mais Médicos oferece bolsas de R$ 11,8 mil — valor superior, por exemplo, à média da remuneração no Norte e Nordeste para os profissionais da Estratégia de Saúde da Família. Nessas regiões, afirma o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o salário fica em torno de R$ 10 mil, mas pode variar bastante. O programa também dá uma ajuda de custo que pode chegar ao valor de três bolsas (mais de R$ 35 mil).

O cubano Arumis Benitez atendeu, desde 2013, um dos mais importantes distritos indígenas do Amazonas — Foto: Arquivo pessoal

O cubano Arumis Benitez atendeu, desde 2013, um dos mais importantes distritos indígenas do Amazonas — Foto: Arquivo pessoal

No Brasil, 301 dos 529 médicos nos distritos indígenas eram cubanos— 57%, segundo o Ministério da Saúde. Se contabilizados apenas os que atendiam esses distritos pelo Mais Médicos, oito a cada dez médicos vinham de Cuba. A população atendida nos distritos de saúde indígena é de 818 mil pessoas, segundo a pasta.

O médico Arumis Benitez foi um dos cubanos a ir trabalhar na região amazônica. Ele disse que o trabalho foi muito gratificante: “São pessoas que precisam muito mesmo [de assistência médica]”. Hoje ele vive no município de Parintins, no Amazonas, está casado, tem dois filhos, e luta para conseguir se manter no país.

De acordo com o Ministério da Saúde, as doenças que mais atingiram os indígenas brasileiros em 2017 foram resfriados, pneumonias, doenças diarreicas agudas e parasitoses. Também há ocorrência de enfermidades crônicas, como AVC, hipertensão e diabetes.

Perfil dos médicos

Além do fator distância, Paulo Basta acredita que a não ocupação das vagas dos distritos indígenas reflete a desigualdade social do Brasil.

“Quem é que tem acesso às faculdades de medicina hoje em dia? Geralmente são pessoas de alto nível socioeconômico, que tiveram uma formação privilegiada. Então as vagas das faculdades são ocupadas pela elite brasileira — elite que não tem nenhum interesse em trabalhar com a questão indígena. Muitos estudantes de medicina são filhos de fazendeiros, produtores do agronegócio, garimpeiros — pessoas que têm conflitos declarados com as populações indígenas e têm interesses econômicos sobre esses territórios”, argumenta.

Para Alessandra Korap, líder indígena da etnia Munduruku da região, a saída dos cubanos é uma perda que a população indígena local vai sentir muito.

“Eles tocavam na pessoa, olhavam no ouvido, na garganta, pegavam na barriga. O que vai acontecer agora? Os médicos brasileiros botam muita dificuldade — falam que não comem aquele peixe, que não comem farinha, que não gostam porque tem muito pinhum [tipo de inseto], que não tem internet, que ele não pagou a faculdade tão cara pra chegar nesse nível”, relata Alessandra.

Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) no Brasil — Foto: Alexandre Mauro/G1

Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) no Brasil — Foto: Alexandre Mauro/G1

Carreira

Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do estudo “Demografia Médica 2018”, que traz um panorama da distribuição dos médicos pelo Brasil, fixar médicos em regiões mais distantes vai contra três características da carreira de medicina no país:

  • Os médicos costumam ter mais de um emprego.
  • Esses profissionais mudam de emprego com frequência, ou seja: não costumam ficar muitos anos no mesmo local. Apesar de o programa não exigir participação mínima, o médico que fica menos de 180 dias no Mais Médicos tem que devolver a ajuda de custo e de deslocamento pagos pelo Ministério da Saúde.
  • Há pouca preferência pela atenção primária entre os médicos brasileiros, que acabam se concentrando nas especialidades. É o oposto do que ocorria com os médicos cubanos.

“Eu acho que vai ser muito difícil conseguir médicos que possam se fixar permanentemente nesses locais — que, a partir de agora, passam a depender dos médicos brasileiros, e vão ter que conviver com uma rotatividade maior de médicos”, avalia Mário.

Apesar de concordar com Paulo Basta que a profissão é elitizada, ele acredita que o isolamento é o principal motivo pelo qual as vagas em distritos indígenas não são ocupadas. “Eu acho que tem a ver com localização, com essa dificuldade com o isolamento, e com esse perfil. Quanto mais isolada, mais de difícil acesso, você vai criando um perfil de médico mais difícil de ser alcançado”, opina.

Aldeia Kamau, terra indígena Baú, no Dsei Tapajós, próxima ao município de Novo Progresso (PA) — Foto: Lucas Albertoni/Arquivo pessoal

Aldeia Kamau, terra indígena Baú, no Dsei Tapajós, próxima ao município de Novo Progresso (PA) — Foto: Lucas Albertoni/Arquivo pessoal

Na contramão

Esse “perfil mais difícil de ser alcançado” é, justamente, o que o médico Lucas Albertoni, 30, acredita ter. Desde a época da faculdade, no interior de São Paulo, ele já ouvia piadas dos colegas por se identificar com a atenção primária.

“Eu não conheço ninguém que tenha interesse na saúde indígena. Mesmo na faculdade, tem umas piadinhas ‘médico de pé descalço’. O trabalho com atenção primária é bem desvalorizado pelos colegas médicos. As pessoas não têm muita noção do que é o indígena, acham que o índio é preguiçoso — o que é absurdo”, diz o médico Lucas Albertoni.

Lucas está na atenção indígena desde 2014, quando se formou e foi para o distrito do Vale do Javari, na fronteira com o Peru e a Colômbia. O local foi um dos últimos a ter contato com brancos, segundo o médico. Desde o ano passado, ele atende no Dsei Tapajós. Com a saída dos cubanos, é o único médico no local, mas não está vinculado ao Mais Médicos.

Ele conta que, depois da desconfiança inicial, conseguiu estabelecer uma relação de confiança com as populações dos locais onde atendeu. Para isso, busca, também, respeitar os conhecimentos indígenas ancestrais.

“Tem uma relação de confiança muito difícil de estabelecer entre o branco e o indígena, por conta do histórico que existe de extermínio, genocídio. Mas eles são pessoas extremamente amistosas. Dependendo de como você trabalha, conversa, de como valoriza ou não a cultura deles, eles vão te dando mais abertura. Eu tento valorizar o máximo possível os tratamentos tradicionais. Nunca precisei participar de um parto em cinco anos de saúde indígena”, relata.

Entre as doenças mais frequentes, afirma, estão os problemas respiratórios e verminoses, além da malária — que é endêmica na região. Nas comunidades que têm mais contato com as cidades, hipertensão e diabetes também costumam aparecer mais. As condições físicas estão entre as dificuldades de atender na região.

“Quando você está numa aldeia, não tem luz, não tem geladeira. Tem muito mosquito. São as dificuldades de estar na selva — as aldeias são dentro da floresta. Faz muito calor: 40ºC na sombra. A gente não costuma sair muito, porque é complicado. Mas eu não me sentia muito à vontade de trabalhar na cidade — a classe médica é conservadora demais, tem outras questões: de dinheiro, salário”, diz Lucas.

Mas… e a língua?

Lucas também se interessou em aprender os idiomas dos pacientes indígenas que atende.

“Com os Kayapó, por exemplo, eu não falo português, só raramente. Isso vai muito de cada pessoa querer ou não aprender a língua. Os Kayapó gostam muito de ensinar o idioma. A maioria dos homens entende e fala um pouco de português. Então a gente vai misturando português com Kayapó e vai se entendendo”, conta.

Ele relata que os Kayapó, por terem tido mais contato com brancos, tendem a falar mais português. Já os Korubo, que ele atendeu no Vale do Javari, têm menos pessoas falando a língua, por serem mais isolados.

Segundo o Censo de 2010, existem 305 etnias e 274 línguas indígenas no Brasil. Nas populações que moram em terras indígenas, mais da metade (57%), diz o Censo, fala a própria língua dentro de casa, e não o português.

Para facilitar a comunicação com os médicos, entram em cena os agentes comunitários de saúde indígenas. Uma das funções que eles têm é traduzir a língua local para o português e vice-versa. Para Paulo Basta, coordenador do Mais Médicos no Tapajós, diferenças no idioma não são um problema — mas um desafio adicional.

“Isso confere a qualquer profissional uma oportunidade de crescimento, de desenvolvimento de outras habilidades — de comunicação, inclusive. Os médicos têm um padrão de comunicação muito técnico, rebuscado. Boa parte dos pacientes brasileiros não entende muito o que os médicos falam. Quando você se vê frente a uma situação de atendimento intercultural, tem que desenvolver estratégias de comunicação mais simples”, avalia Paulo.

Preenchimento das vagas remanescentes

A primeira etapa de seleção dos Mais Médicos, voltada para profissionais brasileiros, foi encerrada no dia 7 de dezembro. Dos 8.411 profissionais aprovados nela, 5.352 (cerca de 64% deles) já haviam se apresentado nos municípios até 18h de quinta-feira (13).

O Ministério da Saúde prorrogou até a próxima terça (18) o prazo para os médicos se apresentarem nos municípios onde escolheram trabalhar.

Para preencher as vagas que faltam, foi aberto um novo edital, que também inclui profissionais formados no exterior que não validaram o diploma no Brasil. Até quinta (13), 6.634 médicos haviam completado a inscrição, cujo prazo termina no domingo (16).

A partir do dia 20, os profissionais com registro no país terão nova oportunidade para se inscrever no programa e escolher os municípios disponíveis. Nos dias 27 e 28, será a vez de os médicos formados no exterior escolherem onde querem trabalhar. Depois, em 3 e 4 de janeiro, os estrangeiros sem registro no país podem se candidatar a vagas.

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