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Jovem estuprada por motorista da Uber escreve desabafo: “Nem sei por quanto tempo chorei”

Checar a placa do carro e a foto do motorista são dicas básicas de segurança para quem usa aplicativos de corrida. Larissa*, 32, e as amigas que a

Jovem estuprada por motorista da Uber escreve desabafo: “Nem sei por quanto tempo chorei”
Jovem estuprada por motorista da Uber escreve desabafo: “Nem sei por quanto tempo chorei”

Redação Publicado em 24/09/2019, às 00h00 - Atualizado às 17h27


Em depoimento exclusivo, ela contou os detalhes e impactos da violência que sofreu e lamenta como sociedade ainda culpabiliza a vítima por estupros: “Ainda não superei a culpa – mas sei que não é minha”

Checar a placa do carro e a foto do motorista são dicas básicas de segurança para quem usa aplicativos de corrida. Larissa*, 32, e as amigas que a acompanhavam depois de um jantar, cumpriram o rito. Depois de deixar as amigas, ela seguiu para casa sozinha. O trajeto que normalmente demoraria 15 minutos – da Zona Oeste até o centro da cidade de São Paulo -, na madrugada da primeira quinzena de agosto, levou 3 horas. Larissa foi estuprada por seu motorista. Leia seu relato:

“Decidi falar porque não quero que ninguém que eu ame passe por isso. Há poucas semanas, fui estuprada por um motorista da Uber enquanto voltava para casa, em São Paulo. Tomo antidepressivos para dormir. Mesmo assim, às vezes, acordo sobressaltada na madrugada, com taquicardia. Sinto que estou sendo vigiada. Não consigo mais andar de carro sozinha nem ir a uma entrevista de emprego sem depender de alguém para me acompanhar. Não me reconheço mais. Minha vida mudou. Não sinto aquela alegria espontânea…

Não costumo sair à noite. Há muitos anos faço trilhas, o que exige preparo físico e boas horas de sono. Desde que voltei de um intercâmbio na Noruega, onde cursei pós-graduação, estava desacelerando um pouco, revendo amigos e familiares. Por isso, fui jantar com amigas – uma delas é chef de cozinha – depois de um dia de entrevistas de emprego. Cada uma levou uma garrafa de vinho. Conversamos a noite toda. Descemos juntas para pedir um carro no aplicativo, que era a maneira segura de voltar para casa. Como meu celular estava com chip internacional em razão do intercâmbio -, uma amiga compartilhou a internet comigo. Entrei no aplicativo da Uber e fiz o pedido. Antes de entrar no carro, perguntei se era mesmo o motorista. Com o positivo, entrei no banco de trás.

O motorista perguntou se eu queria ouvir música. Assenti com um sim e pedi uma água. Ele disse que não tinha, mas que compraria. Insisti que não era preciso, mas mesmo assim ele parou em um posto de gasolina para comprar. Lembro dele me entregando a garrafa aberta. Tomei uns dois goles. A partir daí, minha memória vem em flashes.

Não lembro de descer do carro, atravessar a portaria e entrar na casa da minha mãe. Lá, percebi que o celular não estava na bolsa. Voltei na portaria. O namorado de uma vizinha tentou rastrear aparelho, sem sucesso. O motorista da Uber ficou com meu celular. Fui deitar. Acordei com taquicardia.

Cada flash de memória era uma nova tormenta. No primeiro, lembro do motorista da Uber vindo para o banco de trás. Depois, dele puxando minha calça – e, de fato, a calça estava rasgada. A calcinha, suja. Fui para a casa da minha amiga na noite anterior usando um absorvente interno, estava no fim do ciclo menstrual. Voltei sem. Com o celular da minha mãe, que recebia naquele momento amigas em casa, liguei para um dos meus irmãos. Por telefone, contei: o motorista da Uber abusou de mim.

Minha irmã me levou ao Hospital Pérola Byington, centro de referência em saúde da mulher.  Minha única preocupação era com a saúde. Sentia cólicas fortíssimas. O que tinha acontecido dentro de mim? Naquela busca por respostas, encontrei uma para a qual sequer tinha pergunta. Durante o atendimento, soube que precisava registrar um boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher. E que estupro era crime. Foi ali que a ficha caiu e eu comecei a ficar mal.

Eu já havia sido vítima de violência por ser mulher, como tantas outras mulheres. Na faculdade, quando consegui um bom emprego, perguntaram o que eu tinha feito para pegar a vaga – mais de 80% dos alunos eram homens. No mercado de trabalho, sempre com predomínio de homens, ouvia que, ou se é inteligente, ou é bonita. Nunca reclamei. Aquilo, imaginava, ajudava a me construir como uma profissional mais forte.

Uma das primeiras perguntas que o delegado fez foi quanto tempo eu tinha ficado dentro do carro. O trajeto, sem trânsito, leva dez minutos. Eu achei que tivesse saído da casa da minha amiga perto das 5h da manhã, mas não tinha certeza. Liguei para uma outra colega, a que compartilhou a internet comigo, e perguntei sobre o horário. Ela respondeu que foi às 3h. Assim descobri por quantas horas tinha sido abusada. Ele teve tempo de fazer o que quisesse comigo. Entrei em desespero. Não sei por quanto tempo chorei. Fui muito respeitada na delegacia. Repito isso porque também descobri que muitas mulheres não são. E fico feliz por saber que a lei funcionou para mim.

No hospital, fiz testes, exames, tomei vacina – nem por um minuto eu parava de pensar em como estavam as coisas dentro de mim. Fiz um teste de gravidez. Contaram que eu tenho direito ao aborto seguro. No hospital, liguei para a minha mãe e contei. Ela começou a chorar. Minha mãe me ensinou a ser autossuficiente e estar sempre em alerta, especialmente quando estou sozinha. E foi a primeira coisa que ouvi dela: “falei para você não beber”.

Desde aquele dia, essa culpa não sai de mim. Não era só me deixar em casa? Não era o que todo mundo deveria fazer, não dirigir quando bebe? Uma irmã minha, religiosa, insinuou que a culpa é do meu estilo de vida – não sou casada nem frequento igrejas.

Dei três depoimentos na delegacia. O delegado disse que é normal ir lembrando aos poucos: em choque, pouco se fala. Lembro que o motorista tinha uma mancha na mão – que podia ser uma pulseira escura -, barba grande e cabelo com gel. Ele falava para eu ter calma, que não ia me machucar. Ele forçou sexo anal. E eu, parada, como se fosse um boneco, sem reação – como se estivesse presa dentro de mim. Não sei se me dopou, os exames não saíram.

A polícia descobriu que ele usava foto verdadeira, mas nome falso na plataforma da Uber. Então quando você entrava no carro e checava a foto, como os aplicativos alertam, tudo batia. Como ele conseguiu incluir nome falso na plataforma da Uber, não sei. Minhas amigas, que não me abandonaram um só minuto, entraram em contato com a Uber. Antes do caso se tornar público, a resposta que recebemos é que meus argumentos não eram cabíveis e que minha conta seria excluída. Minha palavra não tinha valor algum. Depois que o caso foi para a imprensa, deixaram a minha disposição o jurídico deles.

Para minha sorte, fui acolhida e rodeada por um grupo de amigas que se organizaram e até hoje me dão suporte. Uma delas achou o recibo da corrida apagado da minha caixa de mensagens pelo motorista da Uber. Mesmo com tudo o que tinha passado, saber que ele planejou tudo doeu ainda mais.

Uma vez, o namorado de uma colega me pegou pelo braço, me empurrou para o banheiro e tentou forçar um beijo. Escapei com uma única marca: um roxo no braço. Na manhã seguinte, liguei para um ex-namorado e contei. Ele disse que aquilo era um crime e que eu deveria denunciar. Achei um exagero da parte dele. Imaginei que fosse cultural – ele é holandês. Quando moramos juntos, eu estranhava voltar para casa e ver tudo limpo, arrumado e a comida feita. Em mais de uma ocasião, perguntei porque ele tinha feito, e ele se sentia ofendido. Um dia, expliquei que no Brasil a divisão de tarefas é realidade de uma minoria. Ele dizia que “isso era muito triste” para as mulheres. Eu tinha aprendido muito com ele, mas não acreditava que as lei valessem aqui. Não fiz boletim de ocorrência. Mas aquela conversa me marcou. Como ele, que era homem, achava que o que tinha acontecido comigo era um crime e eu não? Esse meu ex-namorado foi o responsável por esse “estalo”, do quanto de machismo a mulher sofre no Brasil.

Com informações que passei para os investigadores, encontraram imagens do carro nas câmeras de segurança do posto de gasolina e em outros trechos do percurso. Quando cheguei em casa, levei 20 minutos para descer do veículo. Saí pelo banco da frente – como e quando eu fui parar no banco da frente, não sei. Com a placa do carro, a polícia encontrou o motorista.

Entrei em uma sala com uma espécie de janela para reconhecer o suspeito. Do outro lado da parede, alguns homens enfileirados. Era o terceiro. Tinha uma tatuagem na mão. Não era um monstro. Era uma pessoa comum, casado – depois soube que tinha um filho. Senti uma coisa ruim correr meu corpo, um mal estar. Ele poderia ter me matado e ninguém ia saber de mim.

Se eu fechar os olhos, ainda ouço a voz da minha mãe dizendo que eu não deveria ter bebido, e a da minha irmã reprovando meu estilo de vida. Ainda não superei a culpa – mas sei que a culpa não é minha. Sinto raiva por ter falhado. Com a terapia, consegui dizer para a a minha mãe e para minha irmã o quanto elas me feriram por me responsabilizar pelo estupro que sofri. Nos acertamos. Elas viram o peso que isso teve na minha vida e o trauma que estou vivendo. Todos ficamos abalados. Lendo sobre o assunto, descobri que muitas mulheres não denunciam porque não são acolhidas pela família, por se sentirem incapacitadas.

Não quero mais morar em São Paulo. Não me sinto mais segura aqui e nem quero passar pelas ruas daquela madrugada. Até aquele dia, eu acreditava nas pessoas, agora não consigo confiar em ninguém. Queria muito voltar no tempo, mas não sei se teria adiantado, porque eu ainda acreditaria que aquele motorista cumpriria seu dever de me levar em segurança até em casa.”

Em tempo: a reportagem entrou em contato com a Uber para saber como é feito o registro de motoristas e perguntou se houve alguma falha no cadastramento. A Uber nos respondeu com um comunicado oficial. Diz que “lamenta o crime terrível que foi cometido e já está colaborando com as autoridades no curso das investigações. A empresa repudia qualquer tipo de comportamento abusivo contra mulheres e acredita na importância de combater, coibir e denunciar casos de assédio e violência. A conta do motorista parceiro foi banida assim que a denúncia foi feita. Todas as viagens são registradas por GPS. Isso permite que, em caso de necessidade, nossa equipe especializada possa dar suporte às autoridades, observada a legislação brasileira aplicável, compartilhando informações sobre motorista parceiro e o usuário, seus históricos e qual o trajeto realizado, além de acionar seguro que cobre despesas médicas em caso de incidentes.”

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