Diário de São Paulo
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Há 15 anos, São Paulo teve ‘lockdown’ durante ataques de facção e revide de policiais

Há exatos 15 anos São Paulo teve um dia de "lockdown", mas o confinamento da população naquela ocasião não foi determinado pelo governo estadual. Tampouco

São Paulo
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Redação Publicado em 15/05/2021, às 00h00 - Atualizado às 12h15


PCC atacou bases policiais, matou membros das forças de segurança e provocou caos em 15 de maio de 2006, quando pessoas não saíram das casas. Agentes reagiram e mataram suspeitos e inocentes; mães de vítimas ainda pedem punição aos responsáveis por mais de 500 mortes.

Há exatos 15 anos São Paulo teve um dia de “lockdown”, mas o confinamento da população naquela ocasião não foi determinado pelo governo estadual. Tampouco ocorreu em razão de pandemia para tentar conter a propagação de algum vírus mortal, como acontece atualmente com a Covid.

A maior cidade do país parou no início da noite daquela segunda-feira de 15 de maio de 2006 por causa dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção que age dentro e fora dos presídios. E também devido ao revide das forças de segurança do estado.

De um lado, os integrantes do PCC já tinham começado a chamar a atenção da imprensa e da sociedade dias antes, com rebeliões em presídios e presos protestando contra a transferência de membros da facção para uma penitenciária de segurança máxima na véspera do Dia das Mães.

Depois, membros da quadrilha soltos nas ruas passaram a receber os “salves” (ordens de dentro das cadeias) para atacarem alvos da segurança do governo estadual. Se os criminosos não obedecessem, seriam mortos pela própria organização. Bases foram alvejadas a tiros e agentes de folga acabaram baleados e mortos de surpresa pelos bandidos.

De outro lado, houve retaliação aos ataques por parte dos policiais, que saíram às ruas matando bandidos, suspeitos e até inocentes, segundo especialistas ouvidos pelo G1 (saiba mais abaixo).

Toque de recolher

Presos fazem rebelião na Penitenciária de Junqueirópolis, em São Paulo, em 14 de maio de 2006. O motim começou às 7 da manhã, quando familiares entravam para a visita. Os rebelados subiram no telhado e prenderam faixas na caixa d´água com os dizeres: 'PCC, paz, justiça e liberdade' e 'Contra a Opressão' — Foto: Alex Silva/Estadão Conteúdo/Arquivo

Presos fazem rebelião na Penitenciária de Junqueirópolis, em São Paulo, em 14 de maio de 2006. O motim começou às 7 da manhã, quando familiares entravam para a visita. Os rebelados subiram no telhado e prenderam faixas na caixa d´água com os dizeres: ‘PCC, paz, justiça e liberdade’ e ‘Contra a Opressão’ — Foto: Alex Silva/Estadão Conteúdo/Arquivo

Diante desse fogo-cruzado entre PCC e policiais surgiu um toque de recolher velado na capital. Boatos sobre ameaças de ataques criminosos a pontos de ônibus, lojas, escolas e shopping centers chegarem às pessoas por meio de bilhetes ou de boca em boca. A internet e as redes sociais não eram tão usadas naquela época como agora.

Ainda circularam informações não oficiais, entre a população, de que as polícias Civil e Militar iriam sair para matar os bandidos que estivessem nas ruas. E que qualquer inocente que não ficasse dentro de casa também poderia ser morto.

Com medo, as empresas liberaram seus funcionários mais cedo. O congestionamento na cidade foi recorde: às 18h, a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) registrou 212 km de vias paradas, contra uma média de 58 km para o mesmo horário.

O transporte público parou de funcionar, e o comércio fechou as portas. Os ônibus, que também estavam sendo alvos de ataques dos criminosos, sumiram das ruas, que ficaram praticamente desertas no início da noite.

Só policiais continuaram trabalhando. Alguns trancados em delegacias fechadas. Outros em viaturas, fortemente armados. A resposta das forças de segurança derramou mais sangue.

Mais de 500 mortos

Vídeo do G1 de 2016 mostra o dia em que São Paulo parou em 2006

Vídeo do G1 de 2016 mostra o dia em que São Paulo parou em 2006

De acordo com levantamento feito pela Conectas Direitos Humanos em parceria com o Laboratório da Análise da Violência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 564 pessoas foram baleadas e mortas durante a onda de violência que ocorreu naquele mês de maio de 2006.

Alguns estudiosos consideram que a onda durou de 12 a 20 de maio. Outros citam o dia 21 como fim dele. E há quem sustente que seguiu até o dia 26 daquele mês.

Com uma coisa todos concordam: os “Crimes de Maio”, como esse confronto entre o PCC e as forças de segurança ficou conhecido, ceifou vidas de muitas pessoas que não estavam de nenhum dos dois lados.

Dessas vítimas, 505 eram cidadãos e 59, servidores públicos _entre eles policiais civis e militares, agentes penitenciários e bombeiros.

Outras 110 vítimas ficaram feridas por armas de fogo. Quatro pessoas ainda desapareceram nesse conflito e nunca mais foram encontradas por seus familiares.

Grupos de extermínio

Blitz da Polícia Militar durante onda de violência no estado de São Paulo, em maio de 2006 — Foto: Reprodução TV Globo

Blitz da Polícia Militar durante onda de violência no estado de São Paulo, em maio de 2006 — Foto: Reprodução TV Globo

De acordo com a Defensoria Pública, que atua em ações em favor das vítimas dos ataques de maio de 2006 mortas em periferias de várias cidades paulistas, “a própria Secretaria da Segurança Pública [SSP] do Estado de São Paulo declarou oficialmente que a Polícia Militar [PM] matou 108 pessoas em oito dias”.

Ainda por meio de nota, a Defensoria informou que “existem diversas evidências apontando para a atuação de grupos de extermínio” formados por agentes das forças de segurança.

Denúncias chegaram à Ouvidoria da Polícia sobre grupos de extermínio formados por policiais à paisana, encapuzados em carros e motos, dispostos a matar quem já tivesse passagem criminal, como uma maneira de vingar as mortes dos colegas e dar um recado à facção.

Agentes mortos

Vídeo de 2016 sobre onda de violência em São Paulo em 2006

Vídeo de 2016 sobre onda de violência em São Paulo em 2006

Segundo a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP), 56 agentes foram mortos comprovadamente por integrantes do PCC.

“Os ataques do PCC, ocorridos em 2006, foram uma clara demonstração de afronta do crime organizado à sociedade e ao estado de direito, que foi propiciada pela leniência e incompetência do governo paulista em enfrentar as organizações criminosas”, criticou Gustavo Mesquita Galvão Bueno, presidente da ADPESP.

“Foram 21 agentes penitenciários que morreram durante os ataques do PCC naquele ano”, falou Fábio Ferreira, presidente do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp).

O que diz a Segurança

Polícia Militar dentro de presídio rebelado durante onda de violência no estado de São Paulo, em maio de 2006 — Foto: Reprodução TV Globo

Polícia Militar dentro de presídio rebelado durante onda de violência no estado de São Paulo, em maio de 2006 — Foto: Reprodução TV Globo

A pasta da Segurança se posicionou sobre o assunto por meio de nota, informando que investigou os casos dos “Crimes de Maio”.

“A Polícia Civil investigou, por meio de inquérito policial, todos os casos registrados referentes aos ataques em 2006. As investigações foram acompanhadas pelo Ministério Público e, depois de concluídas, relatadas ao Poder Judiciário”, informa o comunicado da SSP.

Ministério Público

Vídeo de 2016 mostra mães de jovens mortos denunciando falta de investigação

Vídeo de 2016 mostra mães de jovens mortos denunciando falta de investigação

De acordo com o Ministério Público (MP) de São Paulo, sua Promotoria de Direitos Humanos chegou a entrar à época com uma ação para que o governo estadual fosse condenado a indenizar os parentes dos mortos nos ataques. Mas a Justiça negou o pedido.

Na esfera criminal, um policial militar foi acusado pelo MP de executar vítimas na resposta aos criminosos. Em 2014, ele foi condenado pela Justiça a 36 anos de prisão por assassinato. Mas em 2017 seus advogados conseguiram anular a sentença no Tribunal de Justiça (TJ).

Antes, em 2016, a pedido da Defensoria Pública, a Procuradoria-Geral da República (PGR) sugeriu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que a Polícia Federal (PF) investigasse uma chacina com quatro mortos ocorrida no Parque Bristol, na Zona Sul de São Paulo, em 14 de maio de 2006. Mas, em quase cinco anos, a solicitação ainda não foi julgada.

Denúncias

Carro da Polícia Militar atacado durante onda de violência no estado de São Paulo, em maio de 2006 — Foto: Reprodução TV Globo

Carro da Polícia Militar atacado durante onda de violência no estado de São Paulo, em maio de 2006 — Foto: Reprodução TV Globo

Três denúncias já foram feitas sobre o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Na primeira, em 2009, a ONG Conectas citava a violação dos direitos humanos cometida pelo estado brasileiro. Depois, em 2015, a Defensoria pedia o reconhecimento dessa violação e a reparação dos danos causados às famílias das vítimas.

Por último, na quarta-feira (12), entidades da sociedade civil enviaram um pedido para que o governo brasileiro seja cobrado sobre os quatro desaparecidos nos ataques de maio de 2006.

Mães de Maio

Autoridades de SP negam acordo com quadrilha para interromper ataques em 2006

Autoridades de SP negam acordo com quadrilha para interromper ataques em 2006

“Há 15 anos conhecemos o que foi lockdown em São Paulo. E não foi pandemia do vírus. Foi uma pandemia de um vírus letal que não tem vacina. Só haverá vacina quando as autoridades não forem coniventes com as execuções cometidas por forças da segurança contra inocentes”, disse Débora Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, que reúne mulheres que perderam filhos durante os ataques de 2006. Todas elas lutam por justiça para punir os assassinos.

Ela recebeu a notícia do assassinato do filho de 29 anos em 15 de maio daquele ano. Edson Rogério Silva dos Santos era gari na cidade de Santos. “Tenho convicção de que foi retaliação da polícia ao crime aprisionado com o braço armado do estado”, falou Débora. “Eu recebi telefonema de policiais conhecidos dizendo que era para ninguém sair às ruas porque a polícia iria matar qualquer um que estivesse fora de casa”.

Ela e o filho são negros. A maior parte dos mortos nos ataques no estado era preta e/ou pobre.

Em 2006, entidades de direitos humanos denunciaram a suspeita de que o governo de São Paulo teria feito um acordo com a facção para cessar os ataques. À época, as autoridades negaram qualquer negociação com os bandidos.

Meses seguintes

Débora Silva segura a foto do filho Edson Santos, assassinado em 15 de maio de 2006 no litoral paulista — Foto: Cíntia Acayaba/G1/Arquivo

Débora Silva segura a foto do filho Edson Santos, assassinado em 15 de maio de 2006 no litoral paulista — Foto: Cíntia Acayaba/G1/Arquivo

Uma segunda onda de ataques foi feita pela facção entre 12 e 17 de julho de 2006 contra alvos civis e militares como ônibus, supermercados, agências bancárias, concessionárias de automóveis e sindicatos.

Em 7 de agosto daquele ano, novos ataques ocorreram, incluindo o de uma bomba atirada na sede do Ministério Público de São Paulo.

No dia 9 de agosto, a SSP anunciou a prisão de 33 pessoas suspeitas de ligação com os ataques em São Paulo.

PCC em 2021

Reportagem do Fantástico de 2019 mostra cartas com plano de facção criminosa para matar promotor de Justiça

Reportagem do Fantástico de 2019 mostra cartas com plano de facção criminosa para matar promotor de Justiça

Segundo o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, que atua principalmente contra o PCC, a facção praticamente abandonou as rebeliões em presídios e deixou de fazer ataques como os de 2006.

“Morreram muitos integrantes, morreram criminosos, suspeitos. Eles perderam muito armamento. Eles perderam muito dinheiro com o tráfico”, disse Lincoln ao G1 sobre o grupo criminoso. Ele já sofreu inúmeras ameaças de morte por causa de seu trabalho no enfrentamento ao PCC. Por esse motivo anda sempre com escolta policial.

Segundo o promotor, a quadrilha se expandiu nacionalmente para todos os estados do Brasil, em países vizinhos na América do Sul, nos Estados Unidos, e na Europa.

“O PCC também se especializou no tráfico internacional de cocaína”, falou. “O PCC que em 2006 era uma facção criminosa com uma arrecadação ainda modesta, em 2020, nós demonstramos que o PCC enviou mais de R$ 1,2 bilhão em pouco mais de um ano para o Paraguai”.

Marcola cumpre uma pena total de 330 anos de prisão. — Foto: Globonews

Marcola cumpre uma pena total de 330 anos de prisão. — Foto: Globonews

Por esse motivo, um dos focos do MP é asfixiar as contas da facção com diversas operações e prisões de membros do grupo que cuidam do dinheiro vindo do tráfico de drogas. “Estamos atacando o setor financeiro do PCC. O PCC já é considerado hoje uma organização criminosa em estágio pré-mafioso”.

Outra medida adotada pelo Gaeco foi isolar as lideranças da quadrilha em presídios federais de segurança máxima em outros estados para reduzir as chances de que eles se comuniquem dentro das prisões e ordenem os “salves” para serem cumpridos nas ruas por seus integrantes.

“Em fevereiro de 2019, conseguimos remover o Marcola [um dos líderes da facção] e mais 21 integrantes da liderança do PCC para o sistema penitenciário federal, onde permanecem até hoje.”

Presos de facção de São Paulo são transferidos para presídios federais

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Fonte: G1 – Globo.

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