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Executiva trans troca terno por saia: ‘Não era eu’

Todos os dias ela vestia camisa, terno e gravata para trabalhar. Quando chegou a vice-presidente da CA Technologies, na década de 1990, Meghan Stapler era uma

Executiva trans troca terno por saia: ‘Não era eu’
Executiva trans troca terno por saia: ‘Não era eu’

Redação Publicado em 26/10/2016, às 00h00 - Atualizado às 15h16


‘Vi grande diferença em ser mulher no trabalho’, diz executiva transgênero

Todos os dias ela vestia camisa, terno e gravata para trabalhar. Quando chegou a vice-presidente da CA Technologies, na década de 1990, Meghan Stapler era uma mulher que lutava para se esconder por trás de um executivo bem-sucedido. Não reconhecia o homem que via no espelho, até o dia em que decidiu assumir sua identidade feminina.

O ano da transição foi 2004, quando ela passou por uma cirurgia de mudança de sexo. Desde então, Meghan revelou a mulher que conhecia desde os cinco anos de idade. Subiu no salto e passou a usar maquiagem. Mas a volta ao mercado de trabalho logo mostrou que seu conhecimento em tecnologia não garantiria o tratamento de antes.

“Vejo uma grande diferença entre ser mulher no trabalho e ser homem no trabalho”, conta ela, que hoje é executiva de marketing global e membro do conselho de administração da CA Technology, empresa americana fornecedora de software, em entrevista concedida ao G1 no escritório da empresa, em São Paulo.

Ela fez críticas ao espaço praticamente inexistente dos transexuais nas empresas brasileiras, fazendo com que este público seja marginalizado para o traballho informal, como na esfera sexual. Meghan veio ao Brasil participar do evento Diversity Empowered by Software, que discutiu na noite desta terça-feira (25) soluções para integrar minorias ao ambiente corporativo.

Como uma das poucas executivas transgênero no mundo e liderança de causas LGBT, Meghan abraçou uma militância mais ativa pela diversidade. Entrou para o Conselho de Administração da Human Rights Campaign (HRC), maior organização para direitos LGBTs nos EUA e passou a atuar pela igualdade nas empresas, além de ser conselheira de campanhas políticas voltadas para o público LGBT.

Participou das campanhas políticas de Barack Obama e ajudou a organizar almoços na Casa Branca com a primeira-dama, Michelle Obama, e o público LGBT. Também atuou ao lado de Hillary Clinton quando ela era secretária de Estado dos EUA.

Mãe solteira de uma menina gerada por sua ex-parceira, ela diz ter ficado surpresa ao ser a primeira mulher transgênero a receber o prêmio Working Mother of the Year (Mãe Trabalhadora do Ano, em tradução livre), em 2014. Meghan garante que sua vida é igual a de qualquer outra mulher. “Ser trans é apenas um rótulo”, diz.

Você teve uma carreira de sucesso quando ainda era homem. O que mudou na forma como você é vista como profissional quando assumiu sua identidade feminina?
Eu vejo uma grande diferença entre ser uma mulher no trabalho e um homem no trabalho. É claramente visível como as mulheres são tratadas de forma diferente por colegas do sexo masculino que se veem como superiores e levantam a voz para se impor. Eu sempre luto contra isso. Nos EUA, existe esse estereótipo do homem líder que é o “macho alfa”, ele tem porte grande e é incisivo. Quando a mulher tem os mesmos trejeitos ela é mal vista como profissional, é chamada de agressiva e tem que ficar quieta.

Você acredita que essa diferença de tratamento tem a ver também com o fato de você ser uma mulher transgênero?
As duas coisas. Algumas pessoas veem o transgênero como um ser estranho ou inadequado. Outros me viam com desconfiança por eu ter sido um homem e agora ter outra identidade. Sou a mesma pessoa de antes, meu humor continua sendo aquele britânico, inspirado no Monthy Python [série de TV do Reino Unido]. Ainda sou engraçada, minha habilidade no trabalho e com as tecnologias é a mesma de quando eu era homem. Todo mundo deveria trazer seu eu autêntico para o ambiente de trabalho.

Você foi a primeira mulher transgênero a vencer o prêmio Working Mother of the Year (Mãe Trabalhadora do Ano, em tradução livre), em 2014. Como mãe solteira, ativista e executiva, foi uma surpresa para você?
Foi uma grande surpresa. Fiquei honrada por ter sido indicada. Minha filha não é biológica, minha parceira a teve com um doador, mas eu a amo e trato como se fosse minha. Como qualquer mãe tento equilibrar trabalho e vida pessoal. A vida não é mais fácil porque sou trans, nem era mais fácil quando eu era um homem vivendo em uma cultura masculina dominante. Eu luto contra a discriminação, mas minha vida pessoal é a mesma. Ser trans é apenas um rótulo.

Quem era você antes de assumir sua identidade feminina?
Comecei a trabalhar na CA Technologies em 1995 e cheguei a ser vice-presidente sênior. Eu escondia quem eu era todos os dias. Eu odiava vestir camisa, gravata e terno. Aquele homem não era eu. Não sei descrever o que eu via no espelho. Sempre ia trabalhar preocupada que alguém percebesse quem eu era de verdade e me afastei das pessoas por causa disso. Minha carreira era um sucesso, mas eu estava morrendo por dentro.

Você fez uma cirurgia de mudança de sexo. O que levou você a tomar essa decisão?
Eu sabia que tinha que fazer a transição, mas temia que as pessoas não me respeitassem mais. No dia 11 de setembro de 2001, eu seguia para meu escritório em Nova York quando o primeiro avião atingiu a torre gêmea. Perdi quatro amigos nesse dia e percebi que eu vivia uma mentira. Isso foi decisivo para mim. Cheguei a pegar uma arma para tirar minha vida, mas obviamente não fiz isso e decidi que lutaria. Fiz a transição em 2004, quando eu já havia saído da empresa. Achava que não encontraria um emprego de novo, mas em 2010 me convidaram para voltar a trabalhar na CA e aceitei, agora como mulher. Poucas pessoas conheciam minha história na empresa e o ambiente foi bem acolhedor.

Em outra empresa, você acha que teria a mesma liberdade para defender a diversidade?
Acho que não. A CA Technologies tem essa cultura de inclusão das minorias, está no DNA da empresa e tenho muito orgulho disso, mas não é a única empresa a fazer isso. Nos EUA, temos grandes entusiastas da igualdade como Microsoft, Google, Intel e Dell. Se eu estivesse em outra empresa, um dos aspectos que eu procuraria saber é se ela apoia a diversidade. Se não, eu provavelmente não ficaria tão entusiasmada em trabalhar lá.

Você acha que as empresas estão mais dispostas que no passado a aceitar um ambiente de diversidade?
Sim. Quanto mais a empresa fala sobre inclusão e quanto mais diverso o ambiente de trabalho, melhor o clima. Na minha percepção, é muito desafiador para os homens verem as mulheres como iguais. Mas se você não falar e falar e ser vista como forte no seu trabalho isso não vai mudar. Nos EUA, vemos uma mudança para tentar abraçar a cultura para valorizar a diversidade no mundo corporativo. Mas você pode ter políticas fortes e as colocar em prática e quando vê podem não estar funcionando e tem que questionar isso.

Você vê condições iguais de proteção trabalhista para o público LGBT?
A CA tem uma diretriz bem forte contra a discriminação contra o público LGBT, incluindo os transexuais. Aqui eles empregam até quem está passando por uma transição de gênero, de mulher para homem, de homem para mulher. Na empresa onde trabalho não vejo diferença nesse sentido. Você é avaliado pelo seu trabalho. Mas ainda existe muita discriminação contra transgêneros nos EUA, como a questão de qual banheiro eu posso usar. Eu uso o mesmo banheiro que usei nos últimos 12 anos, o feminino.

Você concorda com a criação de banheiros próprios para transexuais?
Não. Com certeza não.

Existe uma lei nos EUA para restringir o uso de banheiros para transexuais.
Essa lei é a chamada HB2, do estado da Carolina do Norte. Ela diz que pessoas transgênero só podem usar o banheiro baseado em seu sexo biológico. Eu fiz a transição cirúrgica, portanto tenho tudo o que uma mulher tem. Mas essa lei quer me forçar a usar o banheiro masculino e acho isso completamente errado. Eles retratam as pessoas trans como se fossem predadores sexuais. Elas sabem quem são desde cedo e isso não deveria impedi-las de ir a um restaurante. Se você faz isso, está dizendo que aquela pessoa não é igual às outras. É errado colocar um homem que se sente uma mulher em um banheiro masculino porque isso é considerar só a característica biológica. Essa lei é o pior da política americana, é ignorância quanto à dignidade humana e falta de entendimento sobre as pessoas.

Como você vê o tratamento do público transgênero no Brasil?
O pior que sei do Brasil são os crimes de ódio contra transexuais. Temos que mudar isso. Quando ninguém te respeita a ponto de você só encontrar trabalho na esfera sexual, isso não é bom para a sociedade. Passou da hora dessa cultura mudar e é preciso falar mais sobre isso nas empresas e nas universidades. Transexuais não são pessoas de uma cor ou classe social, elas estão em todo lugar. Tenho certeza que no Brasil existem médicos e políticos transgênero. É um país de tradição católica muito forte, mas é preciso respeitar os casais homossexuais que querem ter filhos, por exemplo.

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