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Educafro denuncia Bolsa de Valores de SP por perpetuar racismo estrutural

A Educafro , entidade do movimento negro com mais de 44 anos de história- e que milita pela diversidade e inclusão racial de negros e brancos pobres ,

Educafro denuncia Bolsa de Valores de SP por perpetuar racismo estrutural
Educafro denuncia Bolsa de Valores de SP por perpetuar racismo estrutural

Redação Publicado em 08/09/2020, às 00h00 - Atualizado às 10h06


Entidade do movimento negro ligada à educação enviou carta criticando omissão da instituição em políticas de diversidade em seus 130 anos

A Educafro , entidade do movimento negro com mais de 44 anos de história- e que milita pela diversidade e inclusão racial de negros e brancos pobres , sobretudo na educação -, encaminhou carta denúncia ao presidente da Bolsa de Valores de São Paulo , a B3 (Brasil Bolsa Balcão), Gilson Finkelsztain, pelo racismo estrutural praticado e perpetuado pela instituição em seus 130 anos de história, apontando para a ineficácia e a propagação de desigualdades pelas políticas de governança da B3.

Na carta assinada pelo fundador da Educafro, Frei David, e pelo seu consultor de Governança Corporativa, Handemba Mutana, a entidade do movimento negro  acusa a B3 de ser omissa em sua função regulatória de instituir condições, parâmetros e políticas de governança para as empresas que negociam suas ações no mercado financeiro brasileiro. Na prática, segundo a acusação, a Bolsa de Valores é conivente e contribui para as desigualdades raciais e de gênero .

A carta foi enviada em 17 de agosto, seis dias antes da B3 completar 130 anos. A Bolsa de Valores foi criada em 23 de agosto de 1890, dois anos após a abolição da escravatura , em 1888, e em toda a sua história a instituição nunca promoveu ações específicas de governança corporativa que visassem a inclusão da população negra.

“Desde o início das suas atividades com a Bolsa Livre, não apenas ignorou absolutamente os efeitos deletérios do sistema escravocrata , como vem há mais de um século promovendo o crescimento econômico de apenas uma pequena parcela da sociedade brasileira”, diz um trecho do documento da Educafro.

As frases duras direcionadas à bolsa brasileira são baseadas na atuação da instituição no desenvolvimento das atividades que abrangem as suas competências. A B3 é responsável pela listagem de empresas, pela admissão destas à negociação dos valores mobiliários e, por conta de sua competência autorregulatória autorizada por lei pela Comissão de Valores Mobiliários (CMV), deve ser quem cria e implementa diretrizes de segmentação de empresas quanto a governança corporativa, trabalhando pela inclusão de negros, negras e mulheres.

Exclusão de negros e mulheres

Pelo contrário, segundo a Educafro, a B3 tem papel histórico no sentido de contribuir para a concentração de renda e a exclusão de negros e mulheres dos papéis de liderança das empresas. A CVM menciona no capítulo 14 de seu estatuto normativo que o mercado deve “manter equilíbrio entre os interesses próprios e o interesse público “.

“É escandaloso as Bolsas de Valores no Brasil e talvez no mundo reagirem só a escândalos corporativos, mas em escândalos de dimensão global, como o caso do George Floyd , há um silêncio absoluto”, argumenta o Frei David, citando o assassinato cometido por um policial que repercutiu por todo o mundo e gerou uma onda de protestos antirracistas, inclusive no Brasil .

A B3 – Segmento BM&FBOVESPA – define segmentos especiais relacionados a níveis diferenciados de governança corporativa no Brasil. A Bolsa adota, desde 2000, essa diferenciação, com o lançamento do Novo Mercado, composto por 143 empresas; Nível 1, com 26 empresas; Nível 2, com 21 empresas e Tradicional, formado por 180 empresas. A segmentação das empresas foi realizada com o intuito de atrair investidores e desenvolver o mercado de capitais . Em nenhum dos níveis há menção sobre promoção da equidade racial no mercado.

Educafro questiona B3

Durante a adoção da segmentação em relação ao nível de governança corporativa das empresas, a B3 assumiu a causa institucional de potencializar o crescimento do Brasil “junto aos clientes e a sociedade”. Diante deste compromisso, a Educafro questiona na carta: “De qual sociedade a B3 está falando? […] A falta do estabelecimento de exigências normativas autoriza a perpetuação do racismo e das desigualdades raciais nas empresas listadas. É uma contradição, como você pode ter empresas no nível mais alto de exigência e sofisticação de governança corporativa e não mencionar nada sobre diversidade racial?”, questiona a entidade do movimento negro .

O estudo “Diversity Wins – How inclusion matters” (Diversidade Vence – Como a inclusão importa, na tradução literal do inglês), desenvolvido em maio deste ano pela consultoria McKinsey & Company com análises de diversos países, inclusive o Brasil, expõe que companhias com diversidade étnica e cultural obtiveram desempenho financeiro 36% maior em 2019 do que aquelas empresas que não adotam nenhum tipo de medida de inclusão . Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 55,8% da população brasileira é composta por negros, compreendidos pela soma das populações de pretos (9,3%) e pardos (46,5%).

Dados do Instituto Locomotiva apontam que a população negra movimenta cerca de R$ 1,7 trilhão por ano no Brasil. Todavia, o impulso econômico produzido pela população negra, maioria do povo brasileiro, não se reflete nos quadros executivos, especialmente em cargos de gerência das empresas. Dados de uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto Ethos apontam que negros são apenas 6,3% (0,6% pretos; 5,7% pardos) dos gerentes brasileiros e 4,7% (0,5% pretos; 4,2% pardos) dos executivos em companhias do país.

Negros em cargos de liderança

A Educafro cobra da B3, diante desse cenário tão desigual, ações afirmativas e regulamentações que venham a colaborar para que o Brasil tenha a população negra e feminina ocupando cargos de liderança .

“O grande absurdo é que quando nós falamos de governança corporativa , nós falamos em alguma medida sobre gênero, mas nada sobre raça. A B3 sempre teve a finalidade de promover beneficios e nunca se comprometeu, em 130 anos, com a questão racial. Apesar de reagir a escândalos financeiros, ela não reage a um escândalo racial. A Bolsa de Valores precisa incluir nos regulamentos dos três níveis de governança corporativa uma seção que fale que as empresas listadas na Bolsa devem implementar programas de ações afirmativas de gênero e raça”, defende o Frei David.

“A B3, como principal entidade administradora do mercado de capitais e no exercício de sua função autorreguladora, é indiferente, omissa e negligente com a equidade racial, especialmente no que tange os regramentos de boas práticas de governança corporativa para as maiores empresas no Brasil”, diz a carta da Educafro.

Oportunidade para se atualizar

Para a historiadora Juliana Serzedello, mestre em história social e professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), “A B3 pode aproveitar essa denúncia da Educafro como uma oportunidade de se atualizar sobre os procedimentos do mercado em todo o mundo. Demonstrar que há algo que precisa ser melhorado”, prega.

A historiadora cita que a B3 segue a lógica do setor privado no decorrer da história do Brasil, que sempre foi de omissão em relação à questão da diversidade racial . “A gente precisa pensar nos raros casos em que há preocupação com esse tipo de questão. A norma é não haver no campo empresarial nenhuma preocupação com isso até que as políticas públicas de promoção da igualdade racial começassem a acontecer no Brasil”, pontua a mestre em história social.

Serzedello lembra a Conferência de Durban, organizada e promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro de 2001 com o intuito de promover a igualdade racial ao redor do mundo, que foi um marco importante para a inclusão do negro na vida pública e no mercado de trabalho, por meio de políticas públicas que depois foram incorporadas ao mundo corporativo, para questionar a atuação da B3.

“Pensando que isso aconteceu na virada do século e nós estamos em 2020, podemos dizer que a B3 está um pouco atrasada. É uma tendência de 20 anos no Brasil de inclusão da população negra nos quadros das instituições e das empresas”, levanta a professora. Apesar de concordar com a omissão da Bolsade Valores , Serzedello enfatiza o protagonismo da população negra em iniciativas para gerir as próprias finanças e se inserir no mundo do trabalho no período pós-escravidão.

“A  população negra não passou os últimos 130 anos com o chapéu estendido esperando que o mercado fizesse alguma coisa. A partir do momento que aconteceu a abolição da forma incompleta como ela aconteceu, a população negra começa a se articular em instituições próprias”, conta a professora, que cita fundos de Previdência criados por negros e ainda a Sociedade Protetora dos Desvalidos , que atuava na compra de cartas de alforria e na emancipação do negro.

Conquistas da população negra

Nestes 130 anos desde a criação da Bolsa de Valores de São Paulo , a população negra se articulou e alcançou conquistas por meio de ações afirmativas que levaram a inserção deste seguimento populacional na academia – fator que leva a criação de uma mão de obra negra qualificada para o mercado. Segundo pesquisa do IBGE de novembro de 2019, negros e pardos se tornaram maioria em universidades públicas pela primeira vez na história, com 50,3% dos alunos matriculados, mas a desigualdade no mercado permanece.

Neste sentido, a Educafro afirma que “a B3 tem sido completamente omissa em relação ao racismo estrutural e às desigualdades raciais ” por não utilizar a sua prerrogativa institucional para atacar a disparidade socioeconômica entre brancos e negros. A Educafro também relembra em um trecho da carta a função da Bolsa de Valores  de acordo com a Constituição Federal, que diz que o sistema financeiro nacional “é estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem”. Segundo a denúncia, a B3 jamais cumpriu esse papel.

“Considerando as posições que o Brasil está em alguns rankings econômicos e de desigualdade, a B3 parece estar tendo mais resultados em potencializar a concentração de renda do que promover o desenvolvimento econômico do país de forma equilibrada, considerando todo os interesses da sociedade, principalmente de negros e mulheres. É gravíssima e escandalosa a postura omissa , apática e silente de soluções efetivas da principal entidade do mercado financeiro, frente à crise global sobre as desigualdades raciais e os protestos antirracistas em curso no mundo”, denuncia a Educafro no documento.

Procurada pela reportagem do iG sobre a questão, a B3 alegou não ter recebido a carta escrita pela Educafro , mas também não se pronunciou sobre a denúncia de contribuir para o racismo estrutural nem tampouco deu sinais de que atua de modo a construir uma economia mais inclusiva. Na página da instituição na internet, a B3 lista seus valores e em nenhum momento cita seu papel institucional de promover o desenvolvimento equilibrado do País ou mesmo a intenção de atuar para minimizar as desigualdades raciais , sociais ou de gênero.

A carta da Educafro foi enviada diretamente ao presidente da B3 por Frei David em mensagem obtida pela reportagem com os dizeres: “Sentimo-nos como se o joelho da B3 estivesse sobre o pescoço do povo afro, uma vez que a B3 não tem programa robusto e eficiente de inclusão de afro-brasileiros”. A Educafro não obteve retorno de sua cobrança.

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iG

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