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Delegacia da mulher é porta de entrada para acolhimento, mas enfrenta desafios

A violência contra a mulher é um assunto sensível no Brasil. Se, por um lado, o País é o quinto com mais casos de feminicídio do mundo, por outro, a lei Maria

Delegacia da mulher é porta de entrada para acolhimento, mas enfrenta desafios
Delegacia da mulher é porta de entrada para acolhimento, mas enfrenta desafios

Redação Publicado em 09/03/2020, às 00h00 - Atualizado às 12h45


Poucas unidades de atendimento especializado funcionam 24 horas e atendimento às vítimas ainda é questionado; mas especialistas veem melhora

A violência contra a mulher é um assunto sensível no Brasil. Se, por um lado, o País é o quinto com mais casos de feminicídio do mundo, por outro, a lei Maria da Penha, que combate a violência doméstica, é considerada referência e figura entre as três melhores do mundo. Nesse xadrez, as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) são peças fundamentais.

A primeira delegacia da mulher foi implantada em São Paulo no dia 6 de agosto em 1985, quando o ex-presidente Michel Temer (MDB) exercia a função de secretário de Segurança Pública no governo de André Franco Montoro (então no MDB). O estado de São Paulo foi o primeiro a inaugurar Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) .

Segundo dados do governo do estado, São Paulo conta com 133 delegacias da mulher , o equivalente a 36% do total de unidades de todo o Brasil. Entre as 133, 9 delas estão na capital paulista, 16 na região metropolitana e 108 no interior e litoral.

Na cidade com a maior quantidade de DDMs, a proporção aproximada é de uma delegacia para cada 710 mil mulheres. De acordo com a Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, que especifica as diretrizes ideais de funcionamento dessas delegacias especializadas, cidades com até 300 mil habitantes devem ter pelo menos duas unidades, o que indica que há cenário de déficit no atendimento mesmo em São Paulo.

As críticas vão muito além da quantidade de unidades. O horário de funcionamento reduzido – das 9h às 19h, de segunda a sexta – é considerado um dos principais defeitos, uma vez que boa parte das agressões acontece fora do horário comercial.

Atualmente há  dez unidades com atendimento ininterrupto – sete delas estão na capital e as outras três no interior e litoral. Destas, nove passaram a funcionar 24 horas em 2019.

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP), “a Polícia Civil realiza estudos para a ampliação do atendimento das Delegacias de Defesa da Mulher no estado de São Paulo”. O órgão também afirmou que 30 DDMs terão atendimento ininterrupto até 2022.

A expansão do horário é uma grande reivindicação dos movimentos feministas . O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), prometeu durante a campanha que viabilizaria o funcionamento ininterrupto de todas as unidades das DDMs no estado. No início de 2019, no entanto, Doria vetou um projeto de lei que previa esse funcionamento em tempo integral.

O PL havia sido aprovado pela Assembleia Legislativa do estado (Alesp) no fim de 2018. Ao vetar, Doria alegou que o projeto era inconstitucional porque configurava uma interferência no poder Executivo. O governador também justificou o veto dizendo que seria inviável o aumento de servidores em todas as delegacias da mulher no estado.

Além do horário de funcionamento, outra crítica recorrente está relacionada ao atendimento das mulheres que chegam às delegacias para prestar denúncias. Não é difícil encontrar depoimentos de vítimas que dizem terem sido mal recebidas. Há até mesmo casos em que o profissional que atende a mulher chega a mandá-la de volta para casa, sem registrar a denúncia.

A própria Maria da Penha, que dá nome à lei de combate à violência doméstica , questionou em uma entrevista publicada em seu site o atendimento recebido pelas vítimas. “Infelizmente, sabemos que as mulheres que decidem denunciar ainda têm que passar, muitas vezes, pela violência institucional”, pontuou.

Maíra Recchia, advogada da Rede Feminista de Juristas , explica que “ainda que nós tenhamos DDMs que atendam com extrema excelência essas mulheres, há outras tantas que praticam algumas outras violências”.

“As pessoas não querem registrar queixa, as pessoas tentam demover as mulheres da ideia de prosseguir ou de fazer um boletim de ocorrência, porque a maioria dos agressores é do núcleo familiar então falam que a pessoa vai estragar a família”, relata.

A advogada ressalta, porém, que esse comportamento era mais comum há cerca de quatro anos. “As mulheres, de um modo geral, têm tomado consciência e conhecimento dos seus direitos , portanto têm cobrado mais. Eu acho que, de uns anos pra cá, esse inconsciente coletivo tem mudado, na medida em que essas resistências estão ficando mais raras, mas ainda acontecem e muito”, resume.

A delegada Raquel Kobashi Gallinati, primeira mulher a ocupar a presidência do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, diz acreditar que “ capacitando os policiais e elegendo aqueles que têm maior afinidade e conhecimento especializado sobre o tema, o atendimento será de excelência”.

Para Raquel, os problemas enfrentados nas DDMs remontam a uma realidade mais ampla, de desmonte da Polícia Civil . “Com um efetivo muito abaixo do mínimo razoável, a qualidade de investigação e de atendimento à população caem”, explica.

“Isso, sem considerar que muitas delegacias estão sucateadas , sem condições de trabalho. O resultado disso pode ser constatado por qualquer pessoa que vá à uma delegacia: mais de 260 municípios sem delegados, policiais sobrecarregados em escalas exaustivas de plantão e atraso nas investigações”, completa.

Outra questão levantada é o encaminhamento dado às mulheres após o registro da ocorrência. As unidades de atendimento especializado são muito anteriores à Lei Maria da Penha , mas após a aprovação da nova legislatura, os delegados passaram a requerer eles mesmos as medidas protetivas para o juiz.

Maíra explica que com isso, a violência sai da esfera particular , do núcleo da residência, para a esfera pública. E adquire seu curso próprio a partir do momento da denúncia. Mesmo assim, outros aspectos do encaminhamento continuam a ser questionados.

Como resposta, em março de 2013, a então presidente Dilma Rousseff assinou o Decreto Nº 7.958 que estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em São Paulo, a SSP afirma que “todos os distritos policiais adotam o Protocolo Único de Atendimento, que estabelece padrão para o acolhimento das vítimas”.

Ainda hoje, diversos projetos de lei visam otimizar o atendimento nas delegacias. Um deles, o PL 11/19, apresentado pela deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) em fevereiro de 2019, pretende autorizar a autoridade policial a aplicar provisoriamente algumas das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha.

Pelo texto, o juiz deverá ser comunicado no prazo de 24 horas e poderá manter ou rever as medidas . Atualmente, apenas o juiz pode fixar medidas protetivas de urgência. Em 2017 o ex-presidente Michel Temer vetou projeto semelhante.
Mesmo com os problemas apresentados, todas as especialistas ressaltam a importância das Delegacias de Defesa da Mulher para o acolhimento da vítima de violência de gênero. Para Maíra, elas são “uma excelente porta de entrada para o combate à violência doméstica”.

“Eu vejo as DDMs como sendo de suma importância pra gente fazer o recebimento, acolhimento e eventualmente a orientação e providências em defesa das mulheres ”, defende.

iG
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