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Como os encaixes de marcação de Cuca congelaram a criação do Grêmio

"Soubemos neutralizar parte do jogo por dentro. Colocamos como contraveneno nossa agudez, nossa intensidade. Encaixou, deu certo". O relato é de Cuca, ao

Marcação de Cuca
Marcação de Cuca

Redação Publicado em 17/12/2020, às 00h00 - Atualizado às 12h48


“Soubemos neutralizar parte do jogo por dentro. Colocamos como contraveneno nossa agudez, nossa intensidade. Encaixou, deu certo”. O relato é de Cuca, ao explicar a eletrizante e de certa forma surpreendente goleada do Santos na Libertadores, por 4 a 1, que classifica a equipe para as semifinais.

No papel, no tempo de trabalho e no dinheiro, o Grêmio é muito superior ao Santos. Só não foi superior no jogo. Dentro de campo, as duas partidas foram inteirinha de Cuca e de sua estratégia de encaixes por marcação.

Os chamados “encaixes de marcação”, ou a “marcação por encaixes”, são um jeito muito brasileiro de jogar. Nasceu na década de 1950, com Zezé Moreira, e influenciou Zagallo e Telê, jogadores naquela época. É um jeito que acompanhou Cuca em todas suas equipes, até foi motivo de crítica no Palmeiras, e que retorna com força no Santos. Leia mais essa matéria para entender a origem desse modo de organização defensiva.

Cada jogador tem um setor e deve acompanhar o adversário que entra nesse espaço

Os encaixes funcionam assim: cada jogador tem um determinado setor. Uma área que é dele. Dentro desse setor, a principal referência de ação é o adversário. Se o adversário entra na zona, então ele deve ser marcado de perto. De modo oficial, a marcação por encaixes é uma marcação mista, que usa um pouco de espaço e um pouco de individual como referências. Veja que, na imagem, os dez santistas estão próximos dos adversários que estão em seus setores.

Santos praticando os encaixes. Perceba Madson acompanhando Pepê — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Santos praticando os encaixes. Perceba Madson acompanhando Pepê — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Observe as consequências desse movimento: Madson não está alinhado com os outros defensores porque acompanhou Pepê. Já Lucas Braga está mais recuado que Jonathan. Não é dublê de lateral, é porque a referência dele, Victor Ferraz, estava dando amplitude pela direita na iniciação do ataque do Grêmio.

Não tem problema nenhum não formar linhas defensivas ou não fechar o espaço. Toda ideia no futebol, e um pouco na vida, podem dar certo se forem executadas em sua plena lógica. Se cada um fazer sua parte.

Quando o Grêmio tira a bola da pressão, porque Marinho não deixou Diogo Barbosa jogar, todos os santistas continuam acompanhando suas referências. Perceba que Alison começa a correr para perseguir Jean Pyerre, que foi duramente marcado pelo camisa 5 no jogo. Todo mundo faz esse movimento, menos Lucas Braga e Felipe Jonathan…eles fazem um movimento importantíssimo, que o Santos usou e abusou contra o Grêmio: as trocas rápidas de marcador.

A troca de marcação: Lucas Braga inverte de referência com Felipe Jonathan — Foto: Reprodução/Léo Miranda

A troca de marcação: Lucas Braga inverte de referência com Felipe Jonathan — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Lembra que cada jogador tem um espaço e uma referência, que é o adversário? O que acontece se um adversário se movimenta tanto que “pula” um setor? É nesse momento que um time que executa corretamente os encaixes deve se reorganizar com trocas. Comunicação intensa, gritos entre os jogadores, ações rápidas. A troca é fundamental para que o adversário não fique livre nessa estratégia. Até porque o encaixe é arriscado: ele joga tudo no poder de desarme e intensidade da marcação. Se um sai livre, não tem cobertura.

As trocas foram tão rápidas que Lucas Braga e Felipe já se reordenaram: Lucas está com Luiz Fernando, Felipe com Victor. O Grêmio buscou um lado para fazer uma triangulação e simplesmente não tem ninguém livre pela intensidade do Santos sem a bola.

Troca rápida fez o Santos se reorganizar e impedir a triangulação do Grêmio — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Troca rápida fez o Santos se reorganizar e impedir a triangulação do Grêmio — Foto: Reprodução/Léo Miranda

E o que acontece quando o adversário não apenas se movimenta, mas joga com aproximações? Preenche o setor das trocas com mais gente para confundir a marcação?

É o que Diego Souza, conhecido por sua capacidade de baixar para construir e dar opção de passe, faz. Não apenas isso: o Grêmio faz uma tabela bem rápida entre Matheus e Victor. Essa tabela quebra o encaixe do Santos, porque Victor Ferraz sai do encaixe de Felipe Jonathan e fica livre. Nessa situação, é preciso que haja novamente um reordenamento das peças para que os encaixes continuem a manter a bola sob pressão. É aí que entram os defensores. Se a situação pedir, eles devem sair de trás e pressionar a bola.

Luan Peres sai de trás e acompanha Victor Ferraz, que ficou livre — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Luan Peres sai de trás e acompanha Victor Ferraz, que ficou livre — Foto: Reprodução/Léo Miranda

“Nossa, mas e a linha de defesa?”

O Santos não joga com linha de defesa! Joga com encaixe. É mais importante um zagueiro pressionando a bola com o entorno todo encaixado do que uma linha de defesa e alguém sem pressão. O Corinthians, por exemplo, joga com linha. É outra referência. A bola pode estar sem pressão, mas a linha tem que estar junta e fechando o espaço. Já o Santos prefere encurtar o espaço de cada um, sem se importar em fechar um pedaço de campo. Veja como é diferente, mas a lógica é sempre a mesma: impedir a finalização.

Para evitar que o São Paulo chutasse, a defesa do Corinthians formou uma linha muito sólida — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Para evitar que o São Paulo chutasse, a defesa do Corinthians formou uma linha muito sólida — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Com ainda mais agilidade e trocas. Diego Souza sai do Luan Peres e fica livre. Enquanto ele pensa no que fazer, o Lucas Veríssimo sai de trás e vem pressionar a bola…é o tempo de quem estiver perto, como o Felipe, assumir o encaixe no Diego e do Madson encurtar a ação do Pepê. Veja que a área do Santos está totalmente livre. Mas quem que do Grêmio está desmarcado para invadir a área e receber a bola? Quatro gremistas estão encaixotados num lado, e no outro, Madson se prepara para anular Pepê.

Lucas Veríssimo pressiona Diego Souza enquanto Madson acompanha Pepê: Santos anula a jogada — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Lucas Veríssimo pressiona Diego Souza enquanto Madson acompanha Pepê: Santos anula a jogada — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Marcação por zona e marcação por encaixes são formas diferentes de resolver o mesmo problema que o jogo apresenta, que é impedir a finalização do adversário. Se bem aplicadas, as duas cumprem sua missão. É por isso que o problema de uma equipe JAMAIS será sua organização ou sua ideia, mas sim a execução. A prática.

Lembre-se que a ideia existe em nossas cabeças, mas o futebol é jogado por pessoas!

Santos goleia o Grêmio na Vila Belmiro e volta à semifinal da Libertadores

Santos goleia o Grêmio na Vila Belmiro e volta à semifinal da Libertadores

Encaixes são fruto do DNA brasileiro e também do caos que são os clubes aqui

O Santos anulou qualquer tipo de criação do Grêmio usando essa estratégia simples e curta nos dois jogos. Com a bola, apostou em outro clássico de Cuca: um contra-ataque mortal. O Santos até tinha uma certa elaboração com a bola, mas a ideia foi muito clara: encaixar ao máximo o Grêmio, roubar e sair no contra-ataque. Faz sentido. Se o forte do elenco do Santos é a velocidade e a condução em campo aberto de jogadores como Marinho, Lucas Braga e Soteldo, como criar o contexto de jogo para que essa qualidade apareça?

Criando espaço atraindo o Grêmio, encaixando e acionando Marinho no contra-ataque! Por isso Cuca reprisou um movimento que já havia aparecido em outros jogos: um certo “descanso” para Marinho e Kaio Jorge sem a bola. Eles participavam do encaixe, mas havia certas permissões de não correrem o tempo todo para ficarem acima da linha da bola. Assim eram referência de lançamentos, passes verticais, poderiam aproveitar uma sobra e transformar em correria como no segundo gol.

Marinho muitas vezes ficava na frente da linha da bola para puxar contra-ataques — Foto: Reprodução/Léo Miranda

Marinho muitas vezes ficava na frente da linha da bola para puxar contra-ataques — Foto: Reprodução/Léo Miranda

É um jeito de jogar futebol menos complexo, mais brasileiro, menos europeu….pergunta se o santista se importa com isso hoje? Nem sempre ideias complexas são a melhor solução.

Um dos traços mais legais dos encaixes é que eles são frutos do contexto brasileiro. Por isso nasceram assim. O encaixe é mais simples de treinar, porque envolve mais comunicação no jogo que treino e sincronia. Há relatos de treinadores que chegam num clube no dia, combinam as trocas e encaixes no quarto e vencem o jogo do outro dia. Joel Santana era um mestre nisso. Num momento de muita pressão, caos político, dívidas e saídas de jogadores e pouco dinheiro, o que você precisa: um jeito moderno de jogar futebol como Jesualdo Ferreira ou um jeito eficiente de jogar como Cuca?

Encaixes são a forma que os técnicos brasileiros encontraram de simplificar a organização defensiva de seus times. Também de organizar a equipe com pouco tempo, em elencos não tão técnicos, em clubes amadores. Tipo o Santos nesse ano, sabe? Essa é a regra do Brasil. Caos e amadorismo.

É por isso que o trabalho de Cuca no Santos é imenso. E mostra o quão errado é achar que técnicos estrangeiros vão solucionar problemas estruturais do Brasil. Cuca fez tudo o que Jesualdo não fez: entendeu, se adaptou ao contexto e chega numa semifinal merecida de Libertadores, com um elenco que nem o mais otimista santista achou que poderia jogar assim. Cucabol? Sim, senhor!

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GE – Globo Esporte.

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