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China e Afeganistão

Marcus Vinicius De Freitas

China e Afeganistão
China e Afeganistão

Redação Publicado em 24/08/2021, às 00h00 - Atualizado às 12h55


Marcus Vinicius De Freitas

Professor Visitante, China Foreign Affairs University
Senior Fellow, Policy Center for the New South

Depois da ascensão rápida dos talibãs ao governo do Afeganistão após vinte anos da presença norte-americana – e de seus aliados – no país, uma das questões que mais se tem levantado é quanto ao papel que a China desempenhará no novo cenário. Alguns descrentes na solidez do processo de ascensão chinesa vaticinam que a China eventualmente repetirá os erros britânicos e norte-americanos e será mais um que país cairá naquele cemitério de impérios.

Nada poderia ser mais equivocado na leitura dos objetivos chineses. A China compartilha uma fronteira de 76 quilômetros com o Afeganistão, que é uma importante via de acesso aos mercados europeus e parte da Nova Rota da Seda. O país foi incluído no Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), inaugurado em 2015, um projeto substancial de energia e infraestrutura. O CECP é uma artéria fundamental da Nova Rota da Seda para uma integração maior no eixo central asiático. Para tanto, os chineses têm construído ligações ferroviárias e rodoviárias. Além disso, a China tem envidado esforços para desconstruir eventuais rusgas existentes no relacionamento entre o Paquistão e o Afeganistão para que os projetos sigam adiante sem turbulências. Este é um aspecto importante, porque o Paquistão oferece ao Afeganistão um acesso mais rápido ao mar. O Afeganistão deverá constituir um importante “hub” de acesso aos países da Ásia Central.  Com a melhoria no relacionamento bilateral entre o Afeganistão e o Paquistão, os chineses buscam garantir maior celeridade ao CECP para expandir as possibilidades de comércio na Ásia Central.

A China, já há algum tempo, é o maior investidor estrangeiro no Afeganistão, com interesse particular em recursos naturais e na construção de infraestrutura. Os investimentos chineses têm ocorrido na extração de petróleo, na região norte do Afeganistão, nas telecomunicações, e na construção de conexões de fibra-óticas. Tais investimentos, no entanto, não conseguiram ampliar-se em razão da situação política e da segurança instável. A estabilidade prometida – e jamais alcançada – pelos Estados Unidos e países da OTAN não proveu ao Afeganistão a um desenvolvimento econômico substancial. E um dos maiores problemas enfrentados pelo país ainda é sua reduzida capacidade exportadora.

Há, no entanto, vários projetos chineses no país que, a partir de agora, deverão consolidar-se com a maior estabilidade. Os chineses tem um grande projeto petrolífero em Faryab e Sar-i-pul, por parte da Petrochina que, em 2011, venceu uma licitação de US$ 400 milhões, num contrato de 25 anos, mas que permanece parado. A geração de energia é de particular interesse à China, uma vez que o Afeganistão enfrenta sérios problemas de fornecimento. Os chineses pretendem investir pesadamente em projetos de energia a carvão no país. Embora já tenha feito investimentos substanciais, a China tem adotado um compasso de espera até o momento. Um dos projetos mais importantes é a mina de cobre Aynak, a segunda maior do mundo. Espera-se que agora com o Talibã seja possível retomar alguns projetos de maior envergadura, que são essenciais ao desenvolvimento do país. Esta melhoria econômica poderá ter reflexos mais positivos sobre o próprio Talibã.

O maior temor de Beijing é que o Afeganistão sirva de plataforma para separatistas uigures em Xinjiang, sempre um alvo de críticas por parte da comunidade internacional. Os chineses entendem que a estabilidade regional afetará positivamente a continuidade de suas iniciativas e os investimentos relativos à Nova Rota da Seda. Com isto, pretende-se conter o ímpeto de organizações terroristas, como o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, um grupo radical uigur, ativo na região de Xinjiang, que busca, por meio do terrorismo, a independência desta região chinesa. Com o desenvolvimento econômico, muitos dos elementos que fomentam a instabilidade política no país poderão esvanecer. Importa à China um Afeganistão estável para com isso lograr alcançar os mercados consumidores europeus com maior facilidade e sem turbulências relacionadas a ações anti-governo, terrorismo ou de sinofobia.

O objetivo último das negociações entre o Partido Comunista da China e o Talibã têm tido, portanto, um duplo objetivo: assegurar a prosperidade econômica do Afeganistão por meio de investimentos massivos em infraestrutura para consolidação e proteção da Nova Rota da Seda, com a garantia de estabilidade no país, e também garantir que o Afeganistão não permita o crescimento e ascensão de grupos terroristas contrários aos interesses de Beijing. É altamente improvável que a China venha a ter uma presença militar naquele país diante do histórico dos Estados Unidos e Reino Unido.

O pragmatismo chinês, a rápida compreensão dos desafios do Afeganistão e o compromisso com o não intervencionismo deverão ser os princípios norteadores do relacionamento bilateral. Se der certo, talvez o Talibã 2021 venha a ser muito diferente do Talibã 2001. Ainda há esperança.

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