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A clareza chinesa quanto à Guerra

Por Marcus Vinícius de Freitas*

A clareza chinesa quanto à Guerra
A clareza chinesa quanto à Guerra

Redação Publicado em 23/03/2022, às 00h00 - Atualizado às 07h39


Por Marcus Vinícius de Freitas*

A clareza chinesa quanto à Guerra

Em 1954, a liderança da República Popular da China enumerou os princípios que norteariam sua Política Externa – os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”: o respeito mútuo pela soberania e integridade territorial, não agressão mútua, não interferência nos assuntos internos de cada um, igualdade e benefício mútuo e coexistência pacífica.

Através desses princípios, diferentemente de outras potências, a China deixou claro os pressupostos de sua Política Externa que, muitas vezes, não são compreendidos no Ocidente, por ignorância ou má intenção. No Ocidente, prevalece o princípio da Realpolitik – a busca implacável por parte da diplomacia do interesse nacional a partir de uma visão pragmática e objetiva. Em razão disto, muitas vezes, a soberania de um país pode ser desrespeitada caso se contraponha aos interesses do outro, particularmente quando um país é detentor de poderio maior que lhe sustente a ação.

Em nome da Realpolitik, os Estados Unidos, muitas vezes, têm assumido o papel de limitar direitos de estados soberanos, sancionar economicamente e impor, em determinadas situações, a ideia de construção de um estado, segundo uma fórmula preconcebida – e não solidificada entre os países ocidentais – de democracia. Muitas vezes, vimos a troca de regime – a substituição da liderança constituída de um país – constituir o objetivo principal da política externa ocidental, levando, na maior parte a situações de caos institucional jamais recuperáveis. É o caso da Líbia, Iraque, Afeganistão, dentre outros, ao longo da história recente. O problema repetido é sempre o relativo ao dia seguinte: quem assumirá o poder e quais são as garantias de que haverá, de fato, uma significativa melhora na situação atual. A demonização de determinadas lideranças políticas – muitas vezes justificadas pelos atos praticados – não implica pristinidade e retidão nos regimes que seguirem.

A China, por sua vez, tem desenvolvido um conceito alternativo reafirmando que a soberania é um direito igual e inviolável dos estados, não importando a extensão geográfica, regime político ou situação econômica de um país. Assim, aplicando os Cinco Princípios, é raro ver a China interferir diretamente nos assuntos externos de outro estado. Aqui, obviamente, muitos refutarão com a situação de Taiwan, mas é importante relembrar que, desde o Comunicado de Xangai, de 27 de fevereiro de 1972, emitido conjuntamente pelos Estados Unidos e República Popular da China, ficou reconhecido que a situação de Taiwan é um assunto interno da China e que nenhum outro país teria o direito de interferir. Além disso, os norte-americanos reconheceram que “todos os chineses de ambos os lados do Estreito de Taiwan afirmam que existe apenas uma China e que Taiwan é parte da China”. Dai porque comparar Taiwan à Ucrânia é equivocado. Taiwan é um assunto doméstico da China.

A posição chinesa tem sido clara desde o início das tensões entre Rússia e Ucrânia: manter a solidez do relacionamento com a Rússia – algo que não corresponde ao conceito de aliado presente na Carta da OTAN; manter a sacralidade do princípio da não interferência em assuntos de outros estados, e promover o crescimento econômico global.  É por esta razão que a China se tem abstido nas questões atinentes à tensão entre Rússia e Ucrânia, objetivando, ainda, manter equidistância na situação – até para agir como eventual mediadora – e repisar, sempre que possível, o seu compromisso com o multilateralismo, uma vez que – entendem os chineses – a Organização das Nações Unidas é o fórum ideal e único para discussão de situações de conflito como a atualmente existente.

Para nós, ocidentais, este posicionamento de não alinhamento pode parecer estranho. A Europa, constituída por países pequenos, sempre viu na questão das alianças a redenção necessária para um eventual conflito. O fato é que o alinhamento automático obscurece a compreensão dos reais fatores que norteiam uma contenda e forçam os países a tomarem decisões que, certamente, lhes poderão causar dano e, possivelmente, terão de ser revertidas. Este é, sem dúvida, o caso de vários países europeus que, num primeiro momento diante da pressão de Washington, decidiram implementar sanções à Rússia que lhes serão prejudiciais economicamente e que, eventualmente, terão de abandonar por impossibilidade de implementação.

No conceito chinês de uma comunidade de futuro compartilhado, a soberania dos países deve ser sempre respeitada com a impossibilidade de intervenção nos assuntos internos dos outros. As organizações multilaterais devem reassumir, portanto, um papel mais relevante e de maior primazia, particularmente para assegurar uma cooperação ganha-ganha – uma das expressões favoritas dos chineses – como forma de obterem-se melhores resultados no processo de aprimoramento da ordem global.

Diante deste cenário, deve-se compreender que abstenção chinesa jamais foi ambígua. Ela reafirma, de fato e uma vez mais,  a linha estabelecida em 1956 nos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica.  Como bem ensinou Confúcio, “o homem sem constância não pode ser consolador nem médico.” É neste sentido que se deve compreender o silêncio estratégico, que é essencial para capacitar a China a atuar eficazmente na resolução de qualquer conflito.

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*Marcus Vinícius De Freitas
Professor Visitante, China Foreign Affairs University
Senior Fellow, Policy Center for the New South
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