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A ciência que investiga o mundo secreto dos bebês

Estou segurando meu bebê, que não para quieto no colo, enquanto dois cientistas tentam gentilmente remover um capacete futurista da cabeça dele. O acessório,

A ciência que investiga o mundo secreto dos bebês
A ciência que investiga o mundo secreto dos bebês

Redação Publicado em 24/08/2018, às 00h00 - Atualizado às 12h00


Estou segurando meu bebê, que não para quieto no colo, enquanto dois cientistas tentam gentilmente remover um capacete futurista da cabeça dele. O acessório, que parece uma touca de natação coberta por um emaranhado de cabos, é parte de uma das ferramentas mais avançadas em pesquisa sobre a infância – promete revelar mistérios da mente dos bebês e mudar nosso entendimento sobre a fase inicial do desenvolvimento humano.

Mas, neste momento, meu filho de 11 meses aparentemente não quer ser estudado.

“Me desculpa, bebê”, diz Maheen Siddiqui, estudante de doutorado do Babylab, um dos principais centros mundiais de pesquisa da infância, na Universidade de Birkbeck, em Londres.

A pesquisadora está utilizando uma técnica pioneira, chamada espectroscopia funcional em infravermelho próximo (NIRS, na sigla em inglês), para investigar o que acontece dentro das células cerebrais dos bebês enquanto eles olham para rostos, desenhos ou objetos.

Ela observa, em especial, uma enzima da mitocôndria (as minúsculas “usinas” presentes em nossas células que geram a energia de que precisamos para viver).

O equipamento que ela usa emite radiação infravermelha no cérebro, luz com um comprimento de onda específico que passa pelos ossos e tecidos e é absorvida pelo sangue. O aparato foi desenvolvido especialmente para ser confortável para os bebês.

Infelizmente, o meu prefere brincar com a touca do que deixá-la na cabeça. Siddiqui retira a peça com cuidado. Enquanto isso, Laurel Fish, uma assistente de pesquisa, sopra bolhas de sabão no laboratório. Meu filho se anima. E eu começo a entender alguns desafios práticos de se estudar as primeiras semanas e meses de vida de uma criança.

Como os bebês assimilam o que se passa no mundo? Pais de primeira viagem, meu marido e eu nos fazíamos sempre essa pergunta. Desde que ele nasceu, parecia um pequeno alienígena: misterioso e fascinante.

Obviamente, nosso bebê não fazia ideia do que eram roupas. Então, será que ele achava que mudávamos de cor o tempo todo? E como não tinha senso de perspectiva, será que ele pensava que diminuíamos de tamanho ao atravessar de um extremo da sala para o outro?

Há um longo histórico de cientistas que se dedicaram a explorar o mundo secreto dos bebês. Charles Darwin, por exemplo, publicou um diário com observações detalhadas sobre seu filho (“Durante a primeira semana, bocejou e alongou com uma pessoa velha – em especial os membros superiores. Soluçou, espirrou, sugou…”).

Sua prole contribuiu, assim, para o desenvolvimento de sua teoria sobre a evolução.

Mas o passado também está repleto de mal-entendidos extraordinários, talvez porque os bebês não consigam nos dizer o que pensam e sentem. Nos séculos 19 e 20, muitos cientistas ainda acreditavam que nenéns não sentiam dor.

Pesquisadores dos tempos modernos, por outro lado, descrevem os bebês como atentos, sensíveis e inteligentes. Em nossos primeiros anos de vida, mais de um milhão de novas conexões neurais são formadas a cada segundo. E grande parte do funcionamento deste cérebro tão ocupado é desconhecido.

Nas duas últimas décadas, no entanto, os avanços tecnológicos ajudaram os cientistas a fazerem novas descobertas.

“Essa é a mistura perfeita entre filosofia e ciência. Você está, na verdade, se perguntando sobre questões como a origem do conhecimento, o início do pensamento e como a aprendizagem se desenvolve”, diz Natasha Kirkham, especialista em desenvolvimento infantil e pesquisadora do Babylab.

No início dos anos 2000, grande parte da pesquisa da infância envolvia monitorar os movimentos dos bebês e analisar os resultados quadro a quadro em laboratório.

“Mas, agora, é incrível o que podemos fazer. A tecnologia neurocientífica avançou a passos largos”, comemora Kirkham.

“Há tantas coisas que você pode fazer com um bebê. E tanto a aprender sobre o que estão pensando sem que eles tenham que te dizer.”

Exceto, é claro, quando eles não querem cooperar.

Após rejeitar o capacete futurista, meu filho agora está vendo uma mulher recitar versos infantis na televisão à sua frente – e nitidamente mais satisfeito com essa parte do experimento. Apesar da calma exterior, seu cérebro está agora tremendamente ocupado, especialmente a área localizada logo atrás da orelha. Essa região, conhecida como sulco temporal superior (STS), faz parte do nosso “cérebro social”. É onde processamos os encontros com outras pessoas.

Nos adultos, o “cérebro social” já foi bastante pesquisado. Mas em bebês, costumava ser completamente inacessível, uma vez que eles simplesmente não ficam parados tempo suficiente enquanto estão acordados para serem examinados por aparelhos convencionais, como de ressonância magnética.

É aqui que entra a espectroscopia em infravermelho. Siddiqui utiliza um novo protótipo que consegue medir a atividade a nível celular, dentro da mitocôndria. Existem algumas evidências de que as diferenças na função mitocondrial podem estar ligadas ao autismo. Até agora, as pesquisas são baseadas na análise pós-morte de tecido cerebral.

Ela espera conseguir finalmente testar a hipótese em bebês vivos.

Era da informação

O projeto de Siddiqui é uma das peças de um amplo quebra-cabeça científico que vem sendo cuidadosamente montado no Babylab. Pesquisadores estão reunindo ainda informações de exames de ressonância magnética de bebês dormindo, de rastreamento ocular, de eletroencefalogramas que medem a atividade elétrica no cérebro e até mesmo de monitoramento cardíaco.

Um objetivo comum é entender como acontece o desenvolvimento infantil padrão e, em seguida, investigar por que e como alguns bebês se desenvolvem de maneira diferente. Isso envolve estudar não só suas mentes, mas o ambiente a seu redor.

Kirkham, por exemplo, está interessada em saber como os bebês conseguem distinguir as informações importantes das insignificantes, especialmente em ambientes desorganizados.

Os bebês aprendem observando o mundo, tentando identificar padrões e prever o que vem adiante. Mas isso pode ser difícil se o ambiente em que estão inseridos for caótico ou se as pessoas a sua volta se comportarem de maneira imprevisível.

“Uma das piores coisas que acontece na vida de um bebê e que pode causar infinitos danos é não poder prever as reações de outras pessoas”, afirma Kirkham.

“Esse tipo de ciclo de negligência-abuso, em que não se sabe o que vai acontecer quando alguém chega em casa (ou o que vão fazer), causa um dano enorme, porque não ser capaz de prever é assustador”.

Há muitos fatores individuais envolvidos na pesquisa para que os cientistas do Babylab possam dar conselhos específicos sobre como criar filhos, mas as pesquisas que eles estão conduzindo permitem que os pais tomem algumas decisões mais conscientes.

E não apenas porque enfatizam a importância do cuidado e carinho constantes. Por exemplo, um estudo sobre o efeito das telas touchscreen (sensíveis ao toque) em bebês e crianças pequenas revelou que seu uso está associado a menos sono, mas também ao desenvolvimento precoce de coordenação motora fina.

Uma ferramenta que se mostrou particularmente completa para esse tipo de descoberta é a espectroscopia em infravermelho próximo. Irradiar essa luz através do crânio permite aos pesquisadores medir os níveis de oxigênio no sangue que circula no cérebro. Isso, por sua vez, fornece uma imagem da atividade cerebral, já que o sangue rico em oxigênio flui para as áreas ativas.

Quando Sarah Lloyd-Fox, pesquisadora do Babylab, começou há mais de 10 anos a trabalhar com a tecnologia, ela já era usada para estudar cérebros adultos.

Para aplicar em bebês, ela aperfeiçoou o método em parceria com pesquisadores da University College London (UCL). Atualmente, Lloyd-Fox desenvolve o “capacete” padrão – uma larga faixa preta com cabos acoplados – para outros laboratórios, além de conduzir sua própria pesquisa.

“Acho que sou uma das pioneiras”, diz ela, enquanto nos sentamos na sala de espera do laboratório, um espaço que lembra uma creche: alegre e repleto de brinquedos.

Meu filho parece ter esquecido de vez o chapéu engraçado. Ele tenta subir no colo de Lloyd-Fox. Ela aponta para a área atrás da orelha dele, que provavelmente neste momento está sendo inundada de sangue rico em oxigênio – seu “cérebro social” está trabalhando intensamente.

As pesquisas dela geraram uma série de avanços. Um dos estudos mostrou, por exemplo, que recém-nascidos com até um dia de vida ativam seu “cérebro social” em resposta a imagens de uma mulher brincando de esconde-esconde.

Outro levantamento indicou que os cérebros de bebês de quatro a seis meses com alto risco de autismo respondem com menos intensidade aos estímulos sociais se comparados a um grupo de baixo risco. Ninguém tinha sido capaz de demonstrar isso em crianças tão pequenas antes.

De uma maneira geral, a tecnologia aumenta a probabilidade da descoberta precoce de toda uma série de diferenças neurológicas, ajudando as crianças a obterem o apoio adequado muito antes do aparecimento de qualquer sintoma externo.

“Do ponto de vista comportamental, você não vai ser capaz de identificar se o bebê tem autismo ou uma lesão cerebral quando é prematuro, possivelmente até ele completar dois ou três anos de vida”, diz Lloyd-Fox.

“Mas você pode identificar se há uma resposta cerebral antes de o bebê ser capaz de reagir de maneira comportamental”, completa.

Inspiração

Como o equipamento de NIRS é portátil e mais barato do que um aparelho de ressonância magnética, ele também pode revolucionar as pesquisas infantis em países mais pobres.

Em 2012, uma clínica na Gâmbia entrou em contato com o Babylab – eles estavam interessados em usar a tecnologia para estudar bebês da região. Lloyd-Fox transportou então todo seu aparato por meio de estradas esburacadas até uma base rural do país africano, onde foi capaz de replicar suas descobertas.

O procedimento não foi inédito apenas na Gâmbia, mas em toda a África: nunca tinha sido registrada uma imagem do cérebro infantil daquela maneira no continente. A colaboração agora se transformou em um estudo mais amplo sobre o desenvolvimento infantil na Gâmbia e no Reino Unido.

Um dos enfoques da pesquisa é o impacto da desnutrição, uma vez que 25% das crianças do país africano estão gravemente subnutridas.

“Uma das principais perguntas é: como a desnutrição afeta o cérebro?”, diz a pesquisadora.

“Mesmo em pesquisas com adultos, eles não fizeram isso, então estamos de certa forma voando às cegas nesse campo. Na verdade, não sabemos exatamente que áreas do cérebro são afetadas em qualquer pessoa, não apenas em bebês.”

Enquanto isso, em Londres, o Babylab está sendo ampliado. Nos próximos anos, vai inaugurar um laboratório para crianças pequenas com uma caverna de realidade virtual, que promete uma perspectiva completamente nova em relação a esse estágio crucial do desenvolvimento humano.

No fim da minha visita, meu filho adormece. Hoje foi mais um dia emocionante para ele, cheio de novidades.

Eu reflito sobre o que a experiência me ensinou como mãe. Foi reconfortante ouvir que os bebês realmente nos observam e respondem muito antes de conseguirem se expressar. Também foi gratificante saber que muito do que os pais fazem instintivamente – como o afago e os ruídos engraçados – tem sólido respaldo científico e proporciona o melhor ambiente para o cérebro deles se desenvolver.

E será que os recém-nascidos acham que realmente mudamos de cor e tamanho o tempo todo? Segundo Kirkham, especialista em desenvolvimento infantil, essa é uma pergunta brilhante. E ela responde que sim, é possível que meu filho tenha pensado que mudamos de cor. Mas, muito provavelmente, ele simplesmente ignorou as roupas e se concentrou no que realmente importava para ele: os rostos.

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