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Com meta de equidade, esporte olímpico precisa dar atenção às especificidades do corpo feminino

A participação das mulheres em Olimpíadas não foi algo natural, mas uma construção histórica. Na Grécia, onde tudo começou, as mulheres não eram sequer

OLÍMPICO
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Redação Publicado em 08/03/2021, às 00h00 - Atualizado às 10h10


No Dia Internacional da Mulher, atletas olímpicas contam como conhecer o próprio corpo e ter um acompanhamento ginecológico especializado fez a diferença no desempenho esportivo

A participação das mulheres em Olimpíadas não foi algo natural, mas uma construção histórica. Na Grécia, onde tudo começou, as mulheres não eram sequer consideradas cidadãs, que dirá atletas. Em 1896, na primeira edição dos Jogos Olímpicos da era moderna, 285 homens de 13 países disputaram medalhas, mas as mulheres continuaram fora. Nos aguardados Jogos de Tóquio, a meta é equiparar o número de atletas dos dois gêneros.

Mas aumentar o número de vagas ou facilitar o ingresso delas não basta, é preciso ter uma rede de apoio e suporte que entenda as particularidades do universo feminino. Restrita ao lar e aos afazeres domésticos por séculos, a feminilidade foi estereotipada e ridicularizada por muito tempo. Em um processo de ruptura, nem sempre pacífico, as mulheres se fizeram ouvir e permitiram a si mesmas tocar em assuntos considerados tabus.

A palavra menstruação, por exemplo, era falada com receio e bem baixinho. Sinônimos como “chico” carregam preconceitos que elas mesmas desconhecem. Você sabia que “chico” é sinônimo de porco em algumas regiões de Portugal? A representação do sangue menstrual era feita com um líquido azul nas propagandas pudicas de absorvente.

No esporte, o assunto foi ignorado por muito tempo. Os primeiros estudos sobre o corpo e ciclo menstrual da mulher atleta foram publicados na década de 1990, mas o foco era na performance, sem contemplar necessariamente o conforto e a individualidade da esportista.

Menstruação foi e ainda é um tabu no esporte — Foto: Istock Getty Images

Menstruação foi e ainda é um tabu no esporte — Foto: Istock Getty Images

Por aqui, o Comitê Olímpico do Brasil começou um trabalho específico de ginecologia esportiva em 2011. A ginecologista e obstetra Tathiana Parmiggiano lembra que romper alguns padrões não foi fácil. Segundo ela, alguns técnicos faziam pedidos como: “Tira a menstruação delas, a menstruação atrapalha, não quero ninguém menstruada”. Os desejos e a relação de cada uma com o seu próprio corpo não eram respeitados.

– Quando a gente fala em ginecologia do esporte é particularizar o atendimento da mulher atleta para que o que vem do masculino não seja simplesmente repassado para elas – ressaltou Tathiana.

Pouco incentivado pela sociedade em geral, o processo de autoconhecimento feminino começa em atitudes simples como usar o famoso espelhinho para ver aquilo que por gerações foi escondido ou negligenciado. A doutora lembrou que muitas meninas tinham medo de ir ao consultório e inventavam desculpas para faltar.

– No começo, algumas inventavam que estavam menstruadas e falavam: “Não posso passar hoje”. Agora, as mesmas meninas que fugiam, me ligam e falam assim: “Quando você vai vir?!”. Eu acredito que quanto mais informação a gente dê para elas, mais elas conseguem entender e ter adesão, aí o trabalho flui.

Ginecologista Tathiana Parmiggiano atende atleta em consulta de rotina — Foto: Reprodução

Ginecologista Tathiana Parmiggiano atende atleta em consulta de rotina — Foto: Reprodução

A ginecologista esportiva, que inclusive foi atleta do Esporte Clube Pinheiros na juventude, fez um trabalho para questionar verdades absolutas. Na visão da médica, o uso de anticoncepcionais não deve ser uma regra para controlar as variações hormonais, mas um desejo da esportista.

O ciclo menstrual é dividido em três fases: folicular (em que a concentração de estrógeno é maior), lútea (quando a progesterona começa a ser produzida e predomina) e a menstrual (momento em que a produção dos dois hormônios cai). Se engana quem pensa que essas flutuações hormonais mexem apenas com o humor, elas podem afetar os padrões de disparo muscular, a frouxidão dos ligamentos e a biomecânica.

– Por mais que os trabalhos [acadêmicos]tentem ter uma única resposta sobre qual fase do ciclo é a melhor, qual é o melhor contraceptivo, o que a gente vê é que isso é muito individualizado. Elas precisam do tempo delas para entender isso. Seja por que elas sempre ouviram que uma coisa era ruim, seja por que elas não se incomodam e todo mundo acha que elas têm que se incomodar. Bom, é uma coisa muito construída, é uma coisa com muita troca porque não adianta eu impor – comentou Tathiana.

Duda circuito brasileiro de vôlei de praia — Foto: Wander Roberto/Inovafoto/CBV

Duda circuito brasileiro de vôlei de praia — Foto: Wander Roberto/Inovafoto/CBV

Duda Lisboa, jogadora do vôlei de praia classificada para os Jogos de Tóquio, já mudou de opinião pelo menos duas vezes. No comecinho da carreira no alto rendimento, ela gostava de jogar naqueles dias da famigerada tensão pré-menstrual (TPM) porque sentia que tinha mais força e explosão. Fazendo o acompanhamento mais focado desde 2017, a sergipana de apenas 21 anos descobriu qual era o melhor remédio para o seu organismo sem correr riscos por conta dos exames antidoping.

– Mandei todo o meu calendário de competições para a Tathi [ginecologista]. Poderia menstruar durante os períodos de treinamentos, mas não quando estivesse em competição. Meu medo era ficar menstruada nos Jogos Olímpicos, quando já teria uma pressão e ainda estaria desconfortável. Era um cenário que não queria – contou Duda.

Os técnicos também passaram por um processo de descoberta e desconstrução.

– Eu tinha um pouco de dificuldade de chegar até as meninas porque tinha que passar por eles [técnicos], eu tinha que ter autorização deles para chegar, mas hoje é o contrário. Hoje eles me procuram, eles me incluem nos grupos de discussão. Então, nesses 10 anos, sem dúvida, as coisas mudaram muito. O assunto é mais presente, e eles sabem muito mais do que antigamente – disse a médica.

Tricampeão olímpico, José Roberto Guimarães viu uma evolução em quadra depois que as mulheres passaram a ter um acompanhamento especializado de rotina. Há mais de 20 anos observando as equipes femininas de vôlei, ele afirma ter percebido um salto de qualidade na performance entre 60 e 70%. O técnico também admitiu que falar sobre o ciclo das atletas era um tabu.

– Era um tabu, a gente tinha uma preocupação enorme de como iríamos trabalhar com essas características. Com o aparecimento das ginecologistas esportivas, a minha vida foi muito mais simples. Elas começaram a optar sobre como queriam fazer, e isso deixa tudo mais fácil: “Querem menstruar ou não?”, “Emendar as cartelas?”, “Como vou trabalhar com essa sensibilidade que eu tenho ou não, com TPM e menstruação?”. Acho que, hoje, a gente tem uma relação muito tranquila com esse aspecto, porque antes era uma relação um pouco complicada – revelou Zé Roberto.

Gabrielle Roncatto faz o acompanhamento ginecológico desde os 11 anos — Foto: Paula Reis/Flamengo

Gabrielle Roncatto faz o acompanhamento ginecológico desde os 11 anos — Foto: Paula Reis/Flamengo

As consultas começam desde cedo e vão até o fim da carreira, quando algumas esportistas decidem engravidar. Gabrielle Roncatto, nadadora mais jovem do Brasil nos Jogos Rio 2016, fez as primeiras consultas quando tinha apenas 11 anos.

– A gente oscila muito no período pré-menstrual. Você está de um jeito, aí, depois da menstruação, você fica completamente de outro. Então, o meu corpo muda muito. E a ginecologista, desde a primeira consulta, me fez entender isso – comentou a medalhista pan-americana da natação.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) sempre ressalta que os Jogos de Tóquio serão os mais igualitários em termos de participação de atletas mulheres, que representarão 49% do total de competidores. Mas como será essa participação? Será que todas as mulheres estão sendo realmente respeitadas no processo para fazer parte da elite do esporte mundial? Quais são os custos para se tornar uma atleta de alto rendimento enquanto sua individualidade muitas vezes é ignorada? O caminho é longo, mas os exemplos mostram que conforto e pertencimento trazem potência sem doping ou contraindicações.

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Fonte: G1 – Globo.

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